Especialistas da indústria opinam sobre a postura da ESA e das empresas e ajudam a entender porquê a prática de preservação de games não é interessante
A polêmica declaração da ESA que iniciou tudo
A preservação de games é um assunto que ganhou força nas últimas semanas após um representante da Entertainment Software Association (ESA) declarar que as empresas não apoiam a prática. O assunto começou a ganhar ainda mais destaque quando, durante uma audiência realizada no Gabinete de Direitos de Autor da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, Steve Englund, advogado da ESA, referiu-se à situação dos jogos online que encerraram as operações e não podem mais serem reproduzidos.
Englund destacou que não há interesse por parte das empresas que fazem parte da associação (isto é: Nintendo, Microsoft, Sony, Activision Blizzard, Electronic Arts, Bandai Namco e muitas outras) em manter tais jogos online disponíveis. Com isso, o Game Arena entrou em contato com diversos especialistas dentro da indústria dos jogos para buscar opiniões sobre essa postura da ESA e das empresas, bem como entender porquê a prática não é interessante para as partes em questão.
“Jogos devem ser jogados apenas mediante pagamento”
Renan Barreto, fundador do estúdio White Vortex e responsável pela série de RPGs Order from Caos, apresenta um olhar técnico sob o prisma do desenvolvimento de games independentes, o que engloba questões “de armazenamento, interesse do público e das empresas, e preservação da memória em si”. Ele afirma que a lógica do mercado é o investimento e divulgação dos jogos mais atuais, ou seja, os lançamentos. Em contrapartida, é preciso toda uma base tecnológica para rodar títulos mais antigos.
“Para jogar jogos mais antigos é necessário ter equipamentos com retrocompatibilidade ou uma biblioteca online em que esses jogos possam ser jogados”, explica o dev. Renan também destaca o “interesse do público e a questão socioeconômica”, pois o custo de aquisição de jogos na janela de lançamento é mais caro. Por tabela, os consumidores costumam buscar por games que estão há mais tempo no catálogo das lojas digitais, provavelmente porque não conseguem comprar jogos recentes.
“O último ponto é em relação à preservação da memória da indústria. É aí, que acredito estar a chave da discussão. As empresas no geral querem maximizar seus lucros e entendem que seus jogos, como produtos proprietários, devem ser jogados apenas mediante pagamento. Em termos lógicos, não estão errados. Mas, sejamos honestos, como indústria temos uma história bem pujante há algumas boas décadas”, declara Renan.
De acordo com o desenvolvedor, a preservação “é importante para a construção da compreensão do papel social dos jogos”, citando Pong e até o Call of Duty mais recente como exemplos. “Por esse viés, seria interessante haver uma iniciativa das empresas no geral, numa associação para criar um projeto, um cofre de jogos antigos que pudessem ser acessados de forma gratuita, ao menos, com interesses educacionais e de exposição”. Renan elabora usando os museus como base.
“Vamos a museus entender a nossa história, [então] podemos abrir esses espaços virtuais para conhecermos a história da nossa indústria para não repetirmos os mesmos erros, para aprendermos com o que deu certo e para compreendermos o que nos fez chegar até aqui. Esse projeto poderia contar com jogos de 1994 para trás e ir aumentando a lista de acordo com o passar dos anos.”
Finalizando seu argumento, o dev cita ainda a mais nova onda da indústria de videogames: os remakes. Esses produtos nascem porque existiu um projeto original que foi lançado muito tempo antes — e algumas vezes, um remake vai além de uma atualização gráfica. Dito isto, mesmo que os jogadores não conheçam a versão antiga, é importante saber de sua importância e como esse game pode ter contribuído para o amadurecimento da indústria. Além disso, “é fundamental ser conhecido por quem quer criar [jogos]”.
“Coleções só tendem a valorizar”
Do lado do consumidor, um colecionador destaca a preservação histórica para aqueles que têm colecionismo como hobby. É o caso do criador de conteúdo Rato Borrachudo, que cita que “tinha alguns jogos de Xbox 360 que adorava ficar jogando”. Porém, esses títulos, que antes eram encontrados facilmente por meio do Xbox Live, não são mais acessíveis. E além de não poder mais satisfazer uma eventual saudade acessando esses games de maneira prática e rápida; há também o fator da valorização.
“A gente coleciona só mídia física. Então, sempre quando esse tipo de coisa acontece, o [valor] daquela mídia aumenta e valoriza”, explica o youtuber. Ele também relata que quando um jogo bastante aguardado é mal sucedido no lançamento (seja em vendas e/ou crítica), é ainda mais “difícil de encontrar” — especialmente quando a produtora pede para retirar o jogo das lojas (online e eventualmente em estabelecimentos físicos também), ou quando o servidor é desativado, e outras práticas desse tipo.
Rato Borrachudo também cita um caso recente no Brasil: “mídias físicas de Xbox não estão sendo mais produzidas, [e isso] também acontece nos Estados Unidos. Tem alguns jogos que são novos e é difícil de encontrar, e quando encontramos, o preço é alto por causa da escassez no mercado. Para as próximas gerações vamos entender isso melhor, mas as coleções só tendem a valorizar, principalmente aqueles que fazem coleção full set” (que significa ter todos os títulos lançados para uma plataforma).
O papel do Retrogaming e do Abandonware
Por sua vez, o pesquisador de jogos e CEO do Instituto Bojogá, Daniel Gularte, traz um olhar histórico e corporativo sobre a situação dos emuladores e das diferentes formas que esse meio pode ser usufruído. Mas antes, ele explica que existem duas bases em toda essa história, sendo o primeiro o Retrogaming: uma forma de acessar “jogos antigos que não podem mais ser jogados porque não são mais fabricados” — ou que “só podem ser jogados através de dispositivos e mídias específicas”, os quais as empresas não oferecem mais suporte.
“Existem muitas plataformas, principalmente portáteis e jogos de computador que a gente não tem mais notícias. [São] apenas artefatos físicos que podem nos dar vestígios dessas memórias e dessas histórias, principalmente as memórias afetivas”, explica o pesquisador. É aí que entra a comunidade de “jogadores raiz”, que contribuem para manter o cenário Retrogaming. Daniel também afirma que existe um mercado muito grande de consumo desse tipo de mídia.
“A cena retrô tem, inclusive, pessoas especializadas na venda e troca desses equipamentos e jogos”, diz. Os milhões de artefatos descontinuados de forma oficial que são comercializados (tais como Nintendinho, Master System, Mega Drive, PlayStation, Sega Saturn, entre outros , podem ser encontrados em leilões online ou até mesmo em redes sociais e grupos de WhatsApp. Por outro lado, as fabricantes que ainda atuam no mercado também estão de olho no movimento Retrogaming.
Por isso, as marcas ou fabricantes licenciadas lançaram consoles retrô — PlayStation Mini, Super Nintendo Mini, Genesis Mini, etc. — com, pasme, emulação. “Em alguns você até pode usar os cartuchos originais, se os tiver, mas a maioria dos outros são emulação”, explica Daniel. “[As produtoras] utilizam chips, na maioria chineses, que emulam o hardware daquele equipamento. Então a gente pode comparar um Mega Drive original lançado no Japão, com um produzido em 2015 pela Tec Toy, mas são máquinas completamente diferentes”.
A diferença, neste caso, refere-se ao peso, qualidade de material e até a própria experiência de jogo “porque a emulação tem alguns erros, coisas que [entregam que] não são o equipamento real”, relata o pesquisador. Com isso, Daniel ressalta a importância da retroalimentação da comunidade no cenário de Retrogaming, que preserva a memória e o funcionamento (até onde é possível) dos artefatos originais.
“Manter isso não é fácil, um dia esses equipamentos vão parar de funcionar para sempre”, relata o pesquisador, “mas você os tem salvos em mídia digital, possivelmente sendo usados por emuladores, guardados e preservados por diversas coleções e acervos digitais que a gente tem no mundo — algumas inclusive não autorizadas”. Neste ponto entra a segunda base: os Abandonwares, ou seja, quando o produto é descontinuado, seu servidor é fechado e tudo o mais relacionado à encerramento.
“Abandonwares [são] jogos abandonados que a comunidade trata de cuidar e de fazer a manutenção”, afirma. Mas há ainda um terceiro caso, ainda mais grave que mescla ambas as bases: um jogo que existe apenas de forma online que é descontinuado e desligado. “Se não for um produto físico que você pode guardar e jogar como Retrogaming, muito provavelmente esse jogo vai ficar esquecido no tempo”.
“As pessoas vão acabar se esquecendo porque, principalmente, antes dos anos 1990 não havia uma forte capacidade de construir, nem mesmo após os anos 2000, curadorias e acervos dessas mídias digitais e online. Então esses jogos são perdidos, são abandonados, tanto pelas empresas que não oferecem mais suporte, quanto pelos jogadores, que acabam se atualizando com outras plataformas e nem lembram mais daquilo que jogavam.”
“O impacto na indústria sempre foi mínimo nesse sentido”
Considerando os dois caminhos — cópias físicas que ninguém tem e nem joga e mídias digitais que se perderam na internet —, Daniel elabora sobre como as grandes empresas e até mesmo desenvolvedores independentes desistiram do tratamento de manter seu legado e não têm acervo disso. “O impacto na indústria sempre foi mínimo nesse sentido porque ela se desenvolveu como qualquer outra, atualizando as tecnologias e experiências”, afirma.
“Quando a coisa é realmente muito mal feita, no sentido de ser pouco respeitosa com a memória afetiva do jogo, a gamecultura em sua essência, pode sim gerar prejuízos, mas são casos muito esporádicos. A maioria [das pessoas] entende e processa esses mecanismos de atualização. É natural que as pessoas procurem por aquilo que há de novo, independentemente de qualquer coisa. O produto realmente fica obsoleto, e a propensão de ele se tornar um Abandonware é absurda.”
O Brasil não está imune a isso. “Temos algumas cópias e arquivos dos primeiros jogos desenvolvidos por cearenses que datam de 1986”, diz Daniel, complementando que “alguns desses vestígios estão guardados” em um acervo. Os responsáveis por essas criações podem fornecer o acesso a esses artefatos apenas enquanto estão vivos, mas às vezes nem isso é possível, pois existem mídias completamente abandonadas; e “o que sobra são imagens da internet”.
Embora existam muitas pessoas e diversos museus (interativos ou não) de games, computadores e tecnologia espalhados pelo planeta, Daniel diz que “obviamente não vão ter todo o acervo de tudo que tem disponível, pois é muito difícil você ter [uma biblioteca] completa. É impossível, na verdade”. Ainda assim, ele ressalta a importância da preservação de games e consoles, pois essa questão envolve também “a cultura, a relação afetiva da propriedade intelectual, da forma de jogar, da estética, da configuração da sociedade daquela época” e muitos outros aspectos.
Museu permanente de games no Brasil e o valor disso para a população
Daniel revela que seu instituto quer construir o primeiro museu permanente do país, mesmo com a falta de iniciativa pública. “O Brasil faz parte do mundo dos games, não só como consumidor mas também como produtor. Temos jogos brasileiros importantíssimos pra história. Que essa inovação dos games [faça a] indústria de desenvolvimento de jogos prosperar no país. Mas a nível municipal e estadual, um museu de games, por exemplo, deveria ter grande investimento porque traz uma série de valores agregados”, argumenta.
Ele ainda brinca que “quanto mais abandonado, diferente e esquecido” for o jogo mais interessante é a sua proposta. “A gente só tem o trabalho de guardar de forma adequada“, complementa. O movimento de largar e abandonar os jogos é comum: é uma prática da indústria e até mesmo dos desenvolvedores algumas vezes. “Mas também é um movimento das pessoas e dos gestores”, conclui Daniel, pois eles sabem que existe um custo para a manutenção da história, e “não entendem o valor que uma população ganha quando preserva não só os aparelhos, mas suas memórias e histórias”.
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