É inevitável falar em trabalho atualmente sem levar em consideração a Inteligência Artificial (IA). Apesar de trazer uma verdadeira revolução em diversas áreas, a indústria de games sofre com a ameaça de cortes de postos de trabalho constantemente. Inclusive na dublagem, com diversos profissionais da área por todo o mundo já se manifestando com greves, protestos, busca por apoios governamentais e judiciais.
A substituição do “homem” pela Inteligência Artificial já é alvo de debates acalorados em diversos meios, com alguns exemplos lamentáveis que geraram protestos ao longo dos últimos meses. Um dos maiores destaques é a greve do SAG-AFTRA, que já dura meses e ganha ainda mais força, agregando apoios e a atenção da mídia especializada.
A dublagem é um pilar fundamental na imersão dos jogadores, crescendo em importância com o crescimento do mercado de jogos, tanto no Brasil quanto no mundo. Mas a suposta ameaça da IA paira no ar e levanta algumas questões para os dubladores. Para entender melhor esse cenário, conversamos com o Rockets Audio, estúdio brasileiro especializado em localização e dublagem para games.
O impacto da IA na qualidade e futuro da dublagem
Fomos atendidos por Carlos Cassemiro, Diretor de Localização e Business Developer, e Cristiano Prazeres, diretor de áudio e elenco da empresa. Em nossa primeira pergunta, questionamos o uso de inteligência artificial e seus efeitos na qualidade das dublagens em jogos. Para eles, não existe qualquer chance da dublagem por IA substituir a voz humana de maneira eficaz.
“A IA cria possibilidades em muitos aspectos de nosso trabalho, estamos acompanhando de perto a evolução e alternativas para uso, entretanto, no momento, ao nosso ver, não há possibilidade da IA substituir, nem de forma ‘minimamente decente’, a dublagem humana nos games. Desenvolvedores sérios, que valorizam seus projetos, sabem que essa possibilidade não existe. A atuação humana na dublagem é insubstituível, primeiro por conta da atuação em si, onde nenhuma IA consegue atingir os sentimentos e as emoções que a voz humana consegue, e segundo pela localização (adaptação dos idiomas para o português) de terminologias locais, estilos de fala de cada localidade, além do toque artístico colocado pelos atores e diretores, que é arte e qualquer forma de simulação é cópia, não arte – ao nosso ver.”
Ao tocar no assunto, os diretores acreditam que o uso de IA pode até trazer benefícios para os processos de dublagem tanto agora quanto no futuro. “Acreditamos que a IA – como ferramenta – é muito importante para ajudar em pequenos ajustes, retakes, ou mesmo na geração de pequenos arquivos de exemplo para dar suporte aos atores” explica Cristiano. “Isso ocorre em momentos que o áudio original (gravado por vozes humanas) ainda não está disponível para referência durante as sessões de gravação. A IA como ferramenta e não como substituição da voz humana é aceita atualmente em algumas situações específicas”.
Existe um medo real da substituição do homem pela máquina?
Quanto à ameaça da substituição, Carlos e Cristiano reforçam que não deve ser um medo tão forte, desde que usado com ética e para fins benéficos.
“De início, como quase todo mundo, ficamos assustados por conta do boom no mercado, achamos que poderíamos perder parte de nosso trabalho. Mas quando começamos a estudar, ver de perto as ferramentas, conversar com clientes e desenvolvedores nas feiras, vimos que a histeria era maior do que a prática. Muitos deles disseram que não usarão IA em seus projetos, principalmente em localização/dublagem. A Nintendo mesmo publicou recentemente que não usa e não usará IA em seus produtos, pois são décadas de conhecimento criando experiência para os gamers. É arte! E arte criada por IA / máquinas, não é arte, é outra coisa.”
Resultado lamentável, mas existe potencial ético na Inteligência Artificial
Recentemente, o Meta adicionou vozes de atores e famosos ao repertório de IA da empresa. Com isso, o Instagram, Facebook (e futuramente o WhatsApp) utilizarão a tecnologia para reprodução de vozes humanas. Outro exemplo do uso de IA são em dublagens de documentários, onde o recurso de IA é utilizado para adicionar uma tradução simultânea de entrevistados. Quando mencionamos estes dois casos, os diretores do Rockets Audio foram enfáticos em afirmar que o resultado foi abaixo do esperado.
“Já vimos trailers e até algumas falas de jogos feitas com IA e achamos o resultado ruim. Até hoje nunca nos foi solicitado fazer um projeto de dublagem utilizando IA. Normalmente deixamos muito claro aos clientes que é algo que não nos propomos a fazer. Não só por nossa ética, mas também pela qualidade de entrega que consideramos aquém do resultado final com dublagem humana.” explicam os diretores. De acordo com a dupla, o Rockets Audio acredita no potencial da IA para oferecer suporte para o processo de dublagem humana.
Inclusive, existe a possibilidade do uso em dublagem, desde que com autorização do dono da voz: “A IA é uma ferramenta a ser usada nas fases iniciais de desenvolvimento, testes e avaliação de personagens. Uma forma justa e prática de uso, para agilizarmos pequenos ajustes (tipo, trocar um ‘a’ por um ‘o’, ou um ‘para’ pôr um ‘pra’) e pequenos retakes com ajustes mínimos que não exijam interpretação, isso é viável”, afirmam.
“Pode até haver momentos em que precisaremos gravar 5, 10 falas simples e o ator ou atriz esteja viajando. Ou se não puder vir a gravar por algum outro problema pessoal, podemos avaliar a possibilidade de criação das falas com IA, com autorização e pagamento de cachê ao ator, viabilizando o cumprimento do prazo do cliente, sem afetar o cronograma final.” relatam os diretores. “Entendemos que isto seja uma forma justa de usar a IA pelo bem comum, onde todos sejam remunerados corretamente e o cliente não seja prejudicado.”
Acreditem em seus sonhos, futuros dubladores
Mesmo com o ‘terror’ da substituição do trabalho humano pela IA, Carlos, Cristiano e toda a equipe do Rockets Audio defendem que aqueles que querem investir na profissão de dublador não podem desistir, pois o trabalho humano sempre terá espaço. “Para os futuros profissionais da dublagem, nossa dica é seguirem seus sonhos. Não acreditamos que a inteligência artificial irá substituir a atuação humana na dublagem dos jogos ou mesmo na dublagem de filmes, séries, etc.
“Acreditamos e nos esforçamos para que uma ‘IA qualquer’ nunca seja reconhecida como a voz de um jogo ou do ator X ou Y. O dia que isso acontecer, tudo perderá a vida, não teremos mais referência de nada, de ninguém. A atuação humana na dublagem é insubstituível, primeiro por conta da atuação em si, onde nenhuma IA consegue atingir os sentimentos e as emoções que a voz humana consegue. Também existe a localização para o português de terminologias locais, estilos de fala de cada localidade, além do toque artístico colocado pelos atores e diretores. A dublagem é arte e qualquer forma de simulação é cópia, não sendo um trabalho artístico – ao nosso ver.”
Desde já, agradeço aos diretores Carlos Cassemiro e Cristiano Prazeres, bem como toda à equipe do Rockets Audio, pela entrevista e por trazer tantos esclarecimentos sobre a dublagem de games e a inteligência artificial. Com certeza, temos agora uma maior compreensão de como o mercado e membros da indústria enxergam as ‘ameaças e oportunidades’ da tecnologia.
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