Como Superman 64 deixou uma cicatriz no imaginário popular
Já ouviu alguém dizer que adaptações de jogos são sempre ruins? Por décadas, as pessoas defenderam a tese de que os esforços para adaptar histórias de videogames para outras mídias, como, por exemplo, o cinema, dificilmente faziam justiça ao material original. Essa maldição aparentemente foi quebrada nos últimos tempos, especialmente com a série de The Last of Us e o filme animado de Super Mario Bros.
Menos popular, porém, é a tese que afirma que essa é uma via de mão dupla. Acredita-se que a esmagadora maioria dos jogos que adaptam séries ou filmes populares resultaria, salvo exceções, em algo medíocre. É uma generalização rasa, mas cabe questionar aqui: afinal, qual é a origem dessa crença?
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Podemos considerar que o desenvolvimento de jogos inspirados em filmes lida com várias limitações criativas, além de ter, como prazo, a janela de lançamento da obra original nos cinemas. Isso certamente prejudica muito o polimento desses títulos. Mas essa resposta não basta para criar, no senso comum, a ideia de que esses jogos serão inevitavelmente ruins. Seria preciso algum jogo realmente desastroso, um trauma marcante no imaginário de jogadores e fãs.
Dois jogos me vêm à mente quando falamos em adaptações traumáticas. O primeiro, o mítico jogo de E.T. do Atari, já foi protagonista desta coluna de pérolas. O segundo, considerado por grande parte da sociedade civil como o pior jogo de todos os tempos, ganha agora o momento de brilhar no palco: Superman, para o Nintendo 64!
Do que se trata
Antes de tudo, um esclarecimento que tende a chocar algumas pessoas: o nome do jogo é apenas Superman mesmo, sem o 64. Popularmente, virou convenção chamá-lo de Superman 64, seguindo a tendência de outros jogos do Nintendo 64, como Super Mario e Mario Kart. Talvez tenha sido um esforço também para diferenciá-lo de outros jogos com o homem de aço, afinal, ninguém merece ser confundido com esta bomba. Esse motivo é forte o bastante para eu seguir chamando o jogo de Superman 64 pelo restante do texto.
Enfim, Superman 64 foi desenvolvido pela Titus Interactive, uma empresa francesa que, surpreendendo um total de zero pessoas, não está mais em atividade. O lançamento aconteceu em maio de 1999 para o Nintendo 64, e teria também uma versão para o primeiro PlayStation, que, para desespero de todes amantes da décima arte, acabou cancelada.
Como a arte de capa ilustra bem, o jogo se propõe a adaptar a série animada da Warner, que fez bastante sucesso nos anos 90.
O que você faz no jogo
Quem teve a infelicidade de alugar essa fita na época se deparou, de imediato, com um desafio de voar entre argolas no céu. E essa é a imagem mental que as pessoas têm desse jogo, porque pouca gente teve paciência e saúde mental para concluir esse desafio sem arremessar o controle na parede e, então, descobrir o que mais acontece nas outras fases.
A missão inicial consiste em controlar o poderoso Kal-El, vulgo Clark Kent, através de várias argolas flutuando no ar, em um determinado limite de tempo. Seria uma introdução simples e até divertida, se os controles do Superman não fossem absolutamente desastrosos. A rigidez da tarefa beira o sadismo, pois não se pode deixar mais de duas argolas para trás – acho que esse é o critério, nunca entendi muito bem. O que acontece se perder argolas? A frase “LEX WINS”, referenciando o vilão Lex Luthor, aparece na tela e todo o progresso é perdido.
As 16 pessoas, no mundo inteiro, que venceram essa primeira fase descobriram que esse foi apenas o primeiro de muitos desafios de argolas. O que o Superman faz quando não está tentando atravessar anéis virtuais voando no meio do cenário? Bem, existem fases de exploração e combate em ambientes fechados, que podem ser considerados igualmente desastrosos pelas patéticas representações dos golpes e poderes, pelos labirintos frustrantes e repetitivos, e pela quantidade criminosa de bugs que, potencialmente, quebram o jogo.
É emblemático que esse jogo tenha saído em 1999, quando todo mundo temia o tão falado bug do milênio. Mal sabiam as pessoas que o tal bug que paralisaria a sociedade moderna não estava no calendário dos computadores, mas sim em um cartucho de super herói do Nintendo 64.
O impacto estético
O Superman simboliza, especialmente no século XX, a representação máxima não apenas de uma figura altruísta, que age incondicionalmente em prol do bem comum, mas também da ideia ocidental de poder, ao menos do ponto de vista de um homem branco heterossexual. Assumir o papel do homem de aço significa se tornar uma espécie de deus grego da era moderna, com poderes e possibilidades quase ilimitados.
Superman 64 é a antítese de tudo que alguém pode esperar quando vai jogar uma adaptação do Super-Homem para os videogames. Em nenhum momento alguém realmente se sente poderoso durante o jogo, e mesmo voar, que deveria ser a parte mais livre e divertida, se torna um torturante castigo de Zeus. Nesse sentido, não podemos ignorar os méritos desse jogo em realizar o impensável e se firmar como, provavelmente, a maior quebra de expectativa da história dos jogos eletrônicos.
O resultado disso é o trauma do qual falei a princípio. A ideia enviesada de que adaptações de séries e filmes para os videogames tendem a culminar em um desastre, porque foi isso que o mundo presenciou em 1999. Superman 64 é a ferida aberta dos nossos maiores temores, materializada em forma de cartucho.
Um trauma que só pode ser superado quando conseguirmos passar por todas as argolas dentro do limite de tempo.