A emocionante trajetória de Clyde, o livre-arbítrio em forma de fantasma
Videogames, assim como obras de ficção em geral, frequentemente contam histórias que envolvem o conflito do bem contra o mal. Temos a figura bem marcada do protagonista como um ser puro, um raio de luz que combate as trevas da maldade, ganância e destruição.
Quanto mais madura e profunda for uma história, menos evidente é a divisão caricata que separa os dois extremos. Personagens bem escritos costumam apresentar motivações e dilemas que deixam bem mais turva essa linha da moralidade. Há quem chame personagens assim de tridimensionais, mas, ironicamente, o nosso protagonista hoje apresentou essa riqueza de camadas muito antes dos videogames pisarem no terreno das três dimensões.
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Hoje vamos falar do espectro alaranjado que foi injustamente lido por décadas como um covarde. O perseguidor nada implacável que, se possível, gostaria de evitar o conflito direto contra um ser disposto a devorar tudo que encontra no caminho.
É o momento de jogar os holofotes em Clyde, o fantasminha laranja de Pac-Man!
Quem é Clyde
Clyde é um dos quatro fantasmas principais introduzidos no primeiro jogo de fliperama de Pac-Man, em 1980. Ao lado de Blinky, Pinky e Inky, ele faz parte da infame Ghost Gang, a gangue fantasma que persegue o herói comilão pelos labirintos do jogo. Ele é um dos primeiros antagonistas a não apenas ser nomeado, como também ter uma personalidade descrita delimitada nas instruções do jogo.
O fantasma laranja é descrito na introdução de Pac-Man como “pokey”, o que, em tradução livre, seria algo como acanhado, vagaroso. O nome dele no original japonês é Guzuta, que vem de “guzu” (愚図), palavra para descrever alguém lento ou estúpido. Mas seria injusto rotular nosso amigo alaranjado dessa forma sem uma análise mais minuciosa.
Uma descrição muito mais acertada pode ser encontrada na descrição do troféu de Clyde em Super Smash Bros. para Wii U e 3DS. “Um fantasma laranja que não persegue muito o Pac-Man nos jogos da série. Em vez disso, ele gosta de vagar por aí, lidando com as coisas da própria maneira”, diz o texto.
Clyde é, de fato, o mais lento e hesitante do grupo, mas isso pode ser interpretado muito mais como prudência, em vez de covardia. Talvez ele preferisse resolver tudo na base do diálogo. Talvez esteja preocupado não apenas com o próprio bem-estar, mas também dos amigos.
Uma breve biografia
Em 2010, a Namco lançou para o Nintendo Wii um jogo chamado Pac-Man Party. Seria apenas mais um clone esquecível da série Mario Party, porém, a obra nos oferece uma informação valiosíssima: a mãe de Clyde é mencionada. Aparentemente, o fantasma laranja adora os biscoitos de abóbora preparados pela mamãe.
A relação familiar próxima, regada a mimos e demonstrações de afeto, ajuda a explicar a personalidade mais afável de Clyde, avessa a conflitos, que contrasta muito com a atitude dos demais fantasmas companheiros de gangue. A noção dele de afeto e lealdade é o que o impede de abandonar o grupo, inclusive, mesmo raramente concordando com os riscos envolvidos na profissão de vilão de videogame.
Também é seguro afirmar que as décadas perseguindo Pac-Man e sendo devorado pelo mesmo incontáveis vezes causou um baque na saúde emocional do fantasma. Décadas mais tarde, Clyde apareceu no filme Detona Ralph, da Disney, mediando um grupo de apoio para vilões de videogame. No breve diálogo, o clássico perseguidor laranja tem a chance de mostrar mais da sua natureza dócil e conciliadora
O legado
Pac-Man é frequentemente citado como o primeiro personagem original dos videogames, e também como o primeiro mascote da indústria. Antes dele, o mais comum era controlarmos veículos como carros ou naves, ou figuras humanas aleatórias sem um nome ou personalidade. Porém, como vimos, a atenção na construção de uma figura com vida própria não foi dedicada apenas ao protagonista, mas também aos seus perseguidores.
Se os fantasmas do jogo estão entre os primeiros grandes antagonistas dos games, podemos dizer também que nosso querido Clyde está em uma posição muito peculiar na história dos jogos eletrônicos. Sua postura ambígua em relação ao herói e aos demais vilões faz com que o fantasma laranja seja possivelmente o primeiro antagonista a atuar com uma moralidade mais cinza, em um espaço entre os extremismos maniqueístas do bem contra o mal.
Clyde, embora não receba os créditos por isso, está na vanguarda da representação de dilemas morais em videogames, e também da possibilidade de emular livre-arbítrio através da forma como um determinado comportamento foi programado. O fantasma laranja seria, em um mundo justo, símbolo de resistência, autonomia e diplomacia.
Faço votos de uma pós-vida longa e muitos biscoitos de abóbora para o maior espectro alaranjado da história dos jogos eletrônicos!