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O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder
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Crítica | A 2ª temporada de O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder é uma comédia (não-intencional) cheia de vergonha alheia

Crítica | A 2ª temporada de O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder é uma comédia (não-intencional) cheia de vergonha alheia

O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder: uma comédia (não-intencional) de vergonha alheia, citações, imitações e desespero de Hollywood.

Philippe Ramalho •
03/10/2024 às 17h52, atualizado há 2 meses
Tempo de leitura: 11 minutos

O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder é o tipo de série que vira um verdadeiro para-raios de críticas de gente que não tá interessada em falar da série em si. Mas o fato da série atrair esse tipo de resposta torna difícil conversar sobre a série como uma obra midiática em si mesma. E isso é complicado, porque o fã da obra de J.R.R. Tolkien quer que as adaptações sejam boas, e quando não forem, é legal conversar sobre como elas poderiam ter sido melhores.

A Amazon tem conseguido conquistar público com boas adaptações de HQs, livros e games (The Boys, Reacher e Fallout, só para citar alguns exemplos) no Prime Video, adaptações que agradaram tanto o novo público quanto os fãs das histórias originais. No caso de O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder, isso é muito mais difícil.

O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder não é uma boa adaptação da obra de Tolkien. Não chega nem perto de ser um bom prólogo — feito por um estúdio totalmente diferente dos filmes de Peter Jackson —, porque não consegue entregar o que bons prólogos proporcionam: aprofundamento na caracterização e nas origens dos personagens, expansão da ambientação ficcional, novas histórias que complementam a história famosa que elas vieram expandir. Sabemos menos sobre a Terramédia ao assistir O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder. Quais são os sete reinos Anãos? Quais são os nove reinos dos Homens? Onde fica Eregion? Qual a distância entre Lindon e Khazad-Dûm? Quem são os povos das Terras do Sul? E quanto a Arnor, Gondor, Rohan?

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O estilo de escrita de Tolkien encoraja a atenção aos detalhes, a verossimilhança interna da história, uma atenção a múltiplos personagens bem caracterizados, em ambientes bem definidos, com um universo complexo e detalhado que abrange tanto a comédia rural dos hobbits quanto o épico de cavalaria medieval das batalhas em Rohan e Gondor quanto a alta fantasia dos magos, balrogs de fogo, espectros do anel e alta magia. O apreço com a linguagem, a inspiração principal de Tolkien para escrever e criar, resulta num público leitor que aprecia toda a vastidão e riqueza da Terramédia.

O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder terá cinco temporadas. Já ouvimos falar de boas séries com começos ruins (The Office), ou séries muito boas cujo final é muito melhor que o começo (Better Call Saul). Os Anéis de Poder começou muito ruim, e a segunda temporada tem diversos indícios de tentativa de correção de curso — mas ainda deixa muito a desejar.

Existem diversos fatores que se acumulam pra explicar porque a série passa tão longe de ser o sucesso que a Amazon pagou tão caro pra ter. Showrunners assumidamente inexperientes, J. D. Payne e Patrick McKay consideram J. J. Abrams um mentor (o criador de Lost e da terceira trilogia de Star Wars), esse inveterado defensor da artimanha narrativa de “Caixa Misteriosa”, onde você efetivamente enrola seu expectador com mistérios e incertezas que não tem como deixar de resultar em finais decepcionantes ou sem sentido.

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O material que a série adapta se resume a trechos avulsos dos apêndices, ignorando o contexto, embaralhando a cronologia com os saltos temporais, e incontáveis detalhes; mas o pior de tudo é o fato da série fazer tanta questão de imitar cenas, motivos, composições e até frases dos filmes de Peter Jackson, com personagens substitutos e situações substitutas, imitando sem o devido contexto, ao ponto de inverter o sentido original de cada cena.

A primeira temporada, que propõe um enredo de “mistério” sobre “quem será Sauron?”, interliga diversos personagens canônicos (isto é, que de fato foram adaptados dos livros) com vários personagens inventados pela série — quase todos como imitações estranhas, sombras distorcidas dos personagens de O Senhor dos Anéis, reimaginados com algumas pequenas diferenças. O que poderia ser interessante se essas diferenças fossem exploradas nunca se realiza. Situações parecidas, personagens parecidos, contextos diferentes e uma persistente desconexão de causa e efeito. Se a escrita de Tolkien nos recompensa por atentar aos detalhes, a série suplica copiosamente que você ignore tudo, desligue o cérebro e pare de fazer tanta questão enquanto assiste uma história “de fantasia”.

Existe o problema natural de todo prólogo, que é criar uma história situada antes dos eventos da história mais famosa; um prólogo em grande parte inventado, pior ainda — grande parte do conteúdo da série é inventar origens e explicações pra coisas existentes em O Senhor dos Anéis que não precisavam de explicação (e aqui me refiro aos filmes, porque nada disso vem dos livros); a série reutiliza frases e cenas dos filmes em novos contextos, descaracteriza os personagens e cria verdadeiros paradoxos. É irônico pagar tão caro pelos direitos de uso do vasto cânone de Tolkien, pra em seguida ignorá-lo e impor imitações toscas de pedaços avulsos dos filmes de Peter Jackson.

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Enquanto isso, o público que por algum acaso nunca assistiu nada de O Senhor dos Anéis e começou a ver a série se depara com uma história arrastada, inconsequente, cheia de personagens rasos e episódios gigantescos onde efetivamente nada acontece. Coisas que o expectador casual pode até pensar: ah, é chato assim porque é fantasia. Batalhas sem emoção, sem riscos claros, sem objetivo. Personagens que existem flutuando no éter da necessidade, deixando de existir quando sua função cessa — como a cena da arqueira figurante, morrendo igualzinho a Boromir, como se fosse uma morte trágica. Mas a morte dela não é trágica, porque nós não a conhecemos! A série não fez nada pra nos permitir conhecê-la e se importar com ela. Sem o vínculo emocional, a morte dela — que é apresentada como se fosse trágica — acaba parecendo vazia, oca.

Desde que Game of Thrones surpreendeu público (e os engravatados de Hollywood) sendo uma história envolvente e bem-sucedida, todas as emissoras (e streamings) apostaram em adaptações de material de fantasia pra preencher a lacuna que a série da HBO deixou — The Witcher, A Roda do Tempo, A Casa do Dragão são todos competidores razoavelmente bem-sucedidos neste ou naquele aspecto. O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder, sendo uma adaptação da obra do autor que inspirou George R. R. Martin a desenvolver sua detalhada Westeros, tinha tudo pra ser a série que daria certo. Certo?

Os Anéis de Poder espreme milênios de história da Segunda Era da Terramédia em poucas semanas de enredo (aliás, toda a cronologia da série é um caos), confunde a ordem dos eventos, descaracteriza personagens canônicos com personalidades inteiramente novas e contraditórias (supostamente, pra nos deixar interessados em descobrir como eles deixaram de ser assim pra se tornar as versões que conhecemos), mistura personagens inventados com o cânone estabelecido, levanta mais perguntas do que pode responder e decepciona ao se esforçar tanto por reações básicas e fracas, de easter eggs e citações, cenas imitadas com contextos totalmente diferente de outros, frases mirabolantes inacreditáveis (“Por que a pedra afunda e o barco flutua?”), tornando-se uma adaptação revoltante e descarada que o fã conhecedor assiste com escárnio e bile, pra zombar dos absurdos e se divertir às custas da comédia do cringe não-intencional criada pela arrogância dos showrunners inexperientes.

Outras adaptações da Terramédia que tomaram liberdades criativas conseguiram agradar mesmo se distanciando do cânone

Não faltam cenas absolutamente inacreditáveis, que parecem ter sido feitas para causar uma reação realmente negativa: Tom Bombadil, uma das figuras mais enigmáticas no livro, surge adaptado em live-action pela primeira vez, reinventado de um jeito tão absolutamente equivocado que se torna inadvertidamente engraçado. No universo da série, ele é algum tipo de mentor para o protótipo de Gandalf, cheio de discursos sobre o destino, e recitando frases que o futuro Gandalf viria a recitar, numa completa usurpação às avessas. A série nem tentou adaptar o personagem como ele é: em vez disso, transformou-o em um compilado de referências, na esperança de obter alguma reação fácil e barata.

E a pessoa que assiste mas não conhece fica entediada com as constantes menções sem cabimento, as inúmeras pontas soltas, os mistérios que não dão em nada e o enfado geral. Enquanto série, julgada por si mesma, O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder é péssima. Enquanto adaptação de um material conhecido e adorado por legiões de fãs, é um sacrilégio repugnante e indefensável. Mesmo expansões e assumidas invenções em cima da obra de Tolkien que não se apegam ao cânone dos livros, como vastos trechos dos filmes do Hobbit ou os games Shadow of Mordor e Shadow of War, estão num patamar absolutamente superior.

Essas outras histórias situadas na Terramédia pelo menos ousaram contar algo novo e interessante com suas liberdades criativas. O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder, na sua maçante dependência de imitar filmes melhores, se entrega de vez e — felizmente — desaparece da sua mente assim que você para de assistir. Uma abençoada amnésia que sucede a mais cara série-sonífero já criada.

Nota para a 2ª Temporada de O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder

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