A batalha final desse Super Mario World foi bem diferente
Minas Gerais, férias escolares de meio de ano, 1998. O pequeno viajante Pedro Scapin estava visitando familiares na deliciosa cidade de Conselheiro Lafaiete, na boa terra do pão de queijo. Longe de casa, sem meu PlayStation, tive a oportunidade de conhecer um pouco mais de um console até então inexplorado por mim, naquela época: o Super Nintendo.
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Meus primos mineiros não eram tão ligados em videogames, mas, curiosamente, um deles havia ganhado, no natal anterior, um Super Nintendo de presente, e me emprestou para usar durante a minha visita. No entanto, por motivos da falta de interesse supracitada, ele só possuía uma fita, a lendária International Superstar Soccer, e, sim, estamos falando da DELUXE!
Acostumado com Winning Eleven e FIFA, inicialmente não me senti muito à vontade com ISS, mas, como só tinha aquilo para jogar, me forcei a seguir batendo uma bolinha, e até que me afeiçoei ao game posteriormente. Mas eu queria mais. Sempre havia escutado meus amigos falando sobre como Mario era incrível. E meti na cabeça que precisava experimentar esse gameplay.
Perguntei a um primo mais próximo se havia, por lá, alguma loja que vendesse jogos de Super Nintendo, que eu gostaria de comprar uma fita do Mario. Ele perguntou que Mario? Segurei o riso e respondi que era um jogo famoso, que todo mundo no Rio adorava. Saímos, então, em busca do dito cujo.
Para minha surpresa, chegamos a um local dos menos indicados para o fomento do comércio de artigos originais no Brasil, que por motivos de medo da Polícia Federal, escolho não nomear ou detalhar mais a fundo. Depois de perguntar em algumas barracas, quer dizer, lojas, ninguém tinha sequer uma fitinha de Super Nintendo disponível, e voltamos, decepcionados, para casa.
No caminho, meu primo, mais velho que eu, encontrou alguns amigos da mesma idade, que o convocaram para um futebolzinho maroto de férias. Com medo do tamanho dos caras, agradeci o convite, mas disse que estava com fome, e iria em casa lanchar, e eu nunca me arrependi tanto de ter escolhido o International Superstar Soccer ao invés do esporte na vida real.
Nessa época, eu tinha uns 8 ou 9 anos, e meu senso de direção não era lá um GPS integrado. Subi e desci algumas ladeiras (tudo em Minas é subida ou descida, impressionante!), mas acabei me perdendo na rota de volta para a casa dos parentes, e me vi numa rua desconhecida.
Antes mesmo que eu pudesse ficar nervoso, encontrei um grupo de senhoras, sentadas em cadeiras de praia, na calçada, que me orientaram a seguir mais algumas ruas adiante, onde eu veria imediatamente a casa que estava procurando. Agradeci e parti, novamente feliz, na direção que elas apontaram.
Nem mesmo cheguei à esquina, quando vi um pequeno e singelo bazar na garagem de uma casa, e eu só parei porque vi, pendurada, uma camisa novinha do Fluminense, que, apesar de viver um período cataclísmico no final da década de 1990, ainda era meu time do coração.
Me aproximei para ver a camisa de perto, e antes que pudesse tocá-la, um pequeno homem bigodudo montando um dinossauro verde chamou minha atenção. Não podia acreditar, era uma fita de Super Nintendo, e do Mario! O cartucho estava meio sujo, com o adesivo quase todo rasgado. Só um milagre (ou algo completamente oposto) me fez perceber do que se tratava.
A dona do bazar, uma mulher bastante idosa, se balançava em uma cadeira de vime marrom, ao fundo da garagem, numa penumbra, e me assustou quando falou pela primeira vez.
“Não vendo fiado não, moleque! Se não tiver dinheiro, pode rapar fora”, ela disse com uma voz rouca, de fumante.
Fazendo beicinho, respondi que tinha, sim, dinheiro, e perguntei quanto que ela queria pela fita. Quando mencionei o cartucho, a expressão da mulher mudou subitamente, a carranca dando lugar a um sorriso desdentado e babado, os olhos, tomados pela catarata, assumindo um brilho de interesse.
“Ah, sim, você quer minha fita de videogame, né? Ela tá aí já faz um tempinho, minha neta não usa mais. Eu te vendo por 10 reais. Pode ser?”, a mulher perguntou, se inclinando para frente na cadeira de balanço.
“Dez reais?!”, pensei comigo mesmo. Que loucura, aquilo estava muito barato. “Tem certeza, moça? Assim eu tô achando que essa fita tá quebrada. Se tiver ruim eu vou voltar aqui pra trocar, tá?”.
“Tá funcionando, sim, garotinho. Minha neta não vive mais aqui, por isso eu tô colocando pra venda. Pode levar que vai funcionar”, ela respondeu.
Resolvi acreditar na palavra da velha, paguei as dez pratas e segui serelepe de volta para a casa dos meus parentes. Cheguei lá, e a encontrei praticamente vazia, apenas a vó Dirce estava presente, vendo TV, na sala. Passei correndo, dando um “oi” em movimento, para não correr o risco de ficar preso em uma conversa sobre as namoradinhas, e me tranquei no quarto com o Super Nintendo.
Liguei o videogame com a nova fita já inserida, e já fui impactado logo de cara pela gostosa musiquinha do menu do jogo. Ao apertar o start, fui recebido por uma tela que mostrava três saves disponíveis, mas, o primeiro deles, já estava usado. Enquanto o segundo e o terceiro mostravam “Mario” B e C, respectivamente, no primeiro estava escrito “Sarah”, com três pontinhos e um coração, do lado, colado a um número “2”.
Resolvei escolher o segundo save, para começar o jogo do zero, e passei o restante do dia pulando e dando cabeçadas em blocos amarelos com o simpático encanador italiano. Fui chamado para jantar, e, depois de uma bela rodada de pasteis, dos mais variados sabores, tomei um banho e fui deitar.
Mal fechei os olhos e fui surpreendido por um barulho vindo de dentro do quarto, junto com uma luz forte. A TV havia ligado sozinha, e o “pan pan pan, pan pan pan, pan pan pan pan paaaaaan pan” de Super Mario World começou a tocar. Levantei, sorrindo, e resolvi jogar só mais um pouquinho, já tinha entendido todo o hype dos meus amigos cariocas.
Quando fui selecionar meu save, percebi que o nome de Sarah, na primeira linha, estava vermelho. E o coração, do lado, agora era acompanhado do número “1”. Curioso, selecionei o arquivo para ver o que estava acontecendo. Logo de cara fui recebido por uma versão sinistra do mapa do jogo. Ao invés das terrinhas verdes sobre o mar azul, havia um cenário de desolação, continentes queimados e rachados, com fogo ainda ardendo em alguns pontos.
No meio de tudo, havia um castelo assustador despontando, com estacas enferrujadas cobrindo toda a muralha do local. Coisas vermelhas estavam enfiadas nas pontas delas, e, para meu horror, pareciam ser cabeças. Vidrado, segui olhando para o mapa, e cada local era uma aberração maior que a anterior.
Encontrei Mario, com um aspecto exausto, sujo, com dificuldade para respirar, parado no cantinho da tela. Movi o direcional, e ele, quase que se arrastando, andou em direção ao castelo macabro. Acima do mapa, agora aparecia o nome do lugar: “Castelo do Desespero”.
Antes de ter mais tempo para pensar sobre o assunto, uma caixinha de texto surgiu na tela, preta e deprimente, com letras vermelhas formando uma mensagem: “Vai embora! Não adianta mais. Só mais uma vida. E você é o próximo”.
Um espinho gelado perfurou meu pescoço com a percepção daquilo tudo. Sarah, de alguma forma, estava presa dentro do jogo. Apertei o “A” e entrei no castelo. A energia que o lugar transmutava para o mundo real era opressora, quase como uma intervenção no próprio espaço-tempo. Dava para sentir uma força vindo da tela, quente, antiga.
Segui o curso natural da fase, mas “natural” é uma palavra muito errada para descrever o lugar. Nada do que havia jogado antes em Super Mario World me preparou para aquilo. As armadilhas pareciam vivas, se formando e mudando em tempo real, esticando tentáculos asquerosos na direção do meu personagem.
O quarto vibrava, aumentando ainda mais a sensação horrível que me açoitava. Eu só tinha mais uma vida, uma única chance de salvar Sarah. Mas o que quer que havia sequestrado a menina era ardiloso, e não estava disposto a abrir mão da alma que tinha capturado. Gritos e choros histéricos de criança reverberaram ao meu redor, arrepiando minha nuca.
Da televisão, vinha uma deturpação maldita da música tema dos castelos de Super Mario World, que sugeria batimentos de um coração doente, sobrepostos pela respiração ansiosa daquele demônio contra o qual eu estava batalhando. Senti que não estava mais sozinho no quarto, presenças que não deveriam estar nesse plano circulando a cadeira na qual estava sentado, buscando instigar uma desconcentração fatal.
Suando, sentindo o coração pulsar na garganta, eu segui adiante no castelo. Pulando por cima das ferramentas mortais do demônio, esmagando criaturas gosmentas e cadavéricas que surgiam na minha frente. Os berros engasgados de Sarah cada vez mais próximos, desesperados para serem encontrados.
Cheguei, com Mario, a uma porta vermelha e enorme dentro do castelo. Curiosamente, um silêncio sepulcral tomou conta do meu quarto, e apenas um som saía da TV, uma risada, bem baixinha, a qual precisei me aproximar da tela para ouvir, e quando minha orelha quase tocava o aparelho, um berro animalesco me lançou para trás, com o tímpano rompido, sangue escorrendo pela minha bochecha direita.
Sentei na cadeira novamente e entrei pela porta vermelha. O cenário a seguir era pavoroso. Uma espécie de laboratório improvisado numa masmorra muito antiga. Corpos e esqueletos aparentemente, mas não totalmente, humanos, pendiam das paredes, com ossos amarelados e puídos, misturados a pedaços malformados de carne.
Não fazia sentido, mas eu podia sentir o cheiro purulento daquele lugar. Um aroma metálico, de fígado estragado. Ouvia moscas zumbindo, e as sentia debatendo contra minha pele. O demônio me recebeu (metaforica e literalmente) e pude ver que Sarah estava amarrada a uma mesa imunda, muito magra, como se a própria energia vital dela estivesse sendo sugada, pouco a pouco.
Andei com Mario e a batalha começou. O demônio atirando dezenas de feitiços e maldições em minha direção. Pulei, corri, me abaixei, e saltei novamente, e repeti o ciclo inúmeras vezes, criando coragem para me aproximar da criatura. Ela era grotesca, e mesmo com os gráficos mais simples do Super Nintendo, eu via, no interior da mente, a verdadeira forma daquele monstro, mas sem ser capaz de processar inteiramente o que era.
No meio do caminho, entre a porta vermelha e o demônio, havia um poço que emitia uma luz escarlate, pulsante, e, de lá, também vinha uma espécie de hino. Milhões de vozes em um coro desesperado, cada vez mais acelerado, conforme a criatura tentava me atingir com magias sombrias. Levei Mario adiante, esquivando de tudo, e consegui conectar um primeiro ataque nele, fazendo a masmorra, e meu quarto, tremerem convulsivamente.
Sarah não conseguia mais gritar, nem chorar, apenas existia na mesa, com a cabeça pendurada. Seria tarde demais? Ignorando as pontadas de medo desse pensamento, ataquei novamente o demônio, pisando na cabeça amorfa que sobrepunha um corpo diferente de tudo que eu já havia testemunhado.
A sensação era de que um terremoto atingia o planeta em escalas cósmicas. Tudo balançava, e lutei para conseguir manter o foco no que estava acontecendo na tela. O demônio se movia de maneira bizarra, sumindo e aparecendo novamente em pontos aleatórios da masmorra. Em uma sequência de muita sorte, consegui evitar mais alguns feitiços, e apliquei o terceiro e derradeiro ataque na criatura, que, cambaleando, tombou para trás e mergulhou de costas no poço.
Um urro odioso e distorcido explodiu em minha cabeça. Agarrei as orelhas, apertando com força, pois parecia que iria explodir de dentro para fora se não contivesse a energia que vibrava em meu crânio. Depois de longos e aparentemente infinitos segundos, tudo ficou calmo. Na tela, Mario estava muito vermelho, com um olhar exasperado em direção a Sarah.
Andei com o personagem em direção à mesa, ao fundo da masmorra, enquanto, no meu quarto, uma sirene berrava, urgente. Ao chegar em Sarah, apertei o botão “A”, e um quadrinho mostrou um sorriso cansado e agradecido, antes de a tela escurecer. Em vermelho latente, as palavras “Game Over”. O Super Nintendo desligou, da mesma forma que havia sido acionado mais cedo, sem minha intervenção.
Esgotado, voltei para a cama, enquanto a sirene seguia tocando a fúnebre canção das ambulâncias. Dormi quase que instantaneamente, e sonhei que eu estava no lugar de Mario, pulando sobre armadilhas e inimigos, enquanto tentava chegar no chefão final.
No dia seguinte, acordei com uma comoção na casa dos meus parentes. Ao ver meus pais, perguntei o que tinha acontecido, e eles me responderam que uma senhora muito idosa, ali da rua de trás, tinha falecido na madrugada…