Esse TBT não termina do jeito que você imagina…
Rio de Janeiro, verão de 2006. O calor dominava fortemente os dias da vida do jovem Pedro Scapin, que buscava se refugiar em locais com suporte de ar-condicionado. E é em um destes que a história de hoje começa. Lá estava eu na praça de alimentação de um shopping, conversando com amigos e enrolando para deixar o ambiente geladinho e voltar para casa.
Leia mais:
- TBT: Enter the Matrix e o telefone de outra dimensão
- TBT: The Legend of Zelda e o oráculo do banheiro
- TBT: Metal Gear Solid e o enigma dos dois discos
Quando, de repente, fui acometido pela necessidade fisiológica de número 1, e me dirigi ao banheiro mais próximo. Não levei nem dois minutos, mas, quando voltei à praça de alimentação, fui um dos primeiros cosplayers de John Travolta em Pulp Fiction, procurando por algum sinal dos amigos que estavam ali. Abandonado, resolvi dar uma última volta pelas lojas, olhando para coisas que não poderia comprar. Quem nunca?!
Foi então que passei na frente de um estabelecimento bastante duvidoso, com uma fachada escura, repleta de itens que jamais havia visto na vida. Era algo como a Borgin e Burkes, na Travessa do Tranco do Beco Diagonal. A vitrine tinha, literalmente, tufos de poeira e teias de aranha. Olhando para aquilo, com os lábios encrespados de repulsa, vi bem no cantinho do mostruário uma única caixa de um jogo de PlayStation 2.
Curioso que sou, me aproximei um pouco mais, e antes que pudesse identificar o game em questão, o dono da espelunca saltou de dentro da loja, com um visual dos mais antagônicos que você pode imaginar. Ele parecia não tomar banho há dias, os longos cabelos brancos e opacos, os dentes escuros ao ponto de parecer desdentado, no nariz, ou na falta dele, uma ferida purulenta. Apesar disso, o homem deveria sem um grande fã da Khadija, de O Clone, pois estava coberto de ouro. Anéis, correntes, brincos… tudo reluzindo com o brilho dourado.
Expondo aquela atrocidade dental, o homem me saudou com o entusiasmo de um náufrago que finalmente estava sendo resgatado de uma ilha no meio do Pacífico.
“Muito boa tarde, meu jovem! Gostou da minha seleção de raridades, né? Vamos entrando, tem muito mais lá dentro”, disse o dono da loja.
Interessado, mas coberto de medo, respondi que estava com pressa, e que não poderia entrar. “Eu parei só por causa daquele jogo de Play 2 ali, mas nem tenho como comprar”.
“Bobagem! Eu já vivi muitos anos pra saber que o segredo do negócio é negociar. A gente vai conseguir arrumar um jeito de você levar o jogo pra casa, confia em mim”, me respondeu, piscando o olho direito, e me conduzindo pelo ombro para a loja.
Lá dentro, o cheiro não era nada parecido com o que eu imaginei que seria. Mesmo com o aspecto velho e sujo de loja e dono, respectivamente, o ambiente era tomado por um aroma adocicado, que, apesar de parecer familiar, ao mesmo tempo, evocava cenários estrangeiros na minha imaginação. Olhando para todo canto, vi itens absolutamente bizarros, como crânios transparentes, que pareciam ser feitos de alguma pedra preciosa, bolas de futebol, que só faltavam falar “estoy cansado, jefe”, de tão gastas.
“Então é esse o jogo que você quer, certo?”, perguntou o dono da loja, que, de alguma maneira, havia me deixado em frente ao balcão, retornado à vitrine para pegar a caixa, e voltado ao meu lado em questão de um segundo. Olhei a capa, que mostrava, em preto e branco, um jovem guerreiro com uma espada em riste, e uma enorme lua ao fundo. No topo, três palavras se destacavam: Shining Force Neo.
Sorri, e disse que sim com um movimento de cabeça, enquanto lia as informações na parte de trás da capa. Como um ruído marrom, o dono da loja seguia falando comigo, que, encantado com o jogo, não conseguir distinguir uma só palavra. Percebendo minha falta de atenção, o homem deu um berro que quase me fez derrubar a caixa.
“Ei! Eu tô falando com você, garoto. Você quer ou não quer levar o jogo pra casa? Tô te oferecendo um descontão e você nem “tchum” pra mim. Tô achando melhor pegar de volta essa capa”, ele disse, esticando uma mão manchada na minha direção.
“Não! Eu quero sim”, respondi, abraçando a capa, e girando o tronco para criar o máximo de distância entre o jogo e aquela mão carcomida. “Por quanto você faz pra mim? Lembra que eu disse que eu não tenho muito dinheiro, tô só com 60 reais aqui no bolso”.
“Pois é seu dia de sorte, garoto. Esse jogo eu tô vendendo por 59,90. Ainda vai sobrar dez centavos pra você comprar um BigBig”, ele falou enquanto pegava uma sacola plástica, cinza e empoeirada. Entreguei a caixa para ele, que me devolveu dentro da embalagem imunda. Entreguei uma nota de 50, e outra de 10, e recebi de volta uma pequena moeda de cobre.
Agradeci e me virei para sair, e para meu espanto, o homem já estava na porta da loja, sorrindo seu sorriso manchado, as mãos unidas como estivesse simulando um aperto das mesmas com outra pessoa. O brilho que havia naquele olhar, chafurdado em um rosto sujo e barbado, me incomodou bastante, e me fez sair do lugar.
Enquanto caminhava, o homem apontou para a saída e disse: “Obrigado por fazer negócio comigo, meu garoto. Depois que você abrir essa porta, não tem mais volta. Aproveita o jogo!”. E voltou como uma sombra para o balcão, levantando uma onda daquele cheiro doce e estrangeiro.
Abri a porta, e encontrei o shopping quase às escuras. A maioria das lojas ao redor, fechadas, apenas alguns restaurantes da praça de alimentação ainda funcionando. Perguntei a um segurança que horas eram, e ele respondeu que faltavam 15 para meia-noite. Nervoso, me dirigi à saída do local, pensando na loucura que seria voltar andando para casa, àquela hora, em pleno Rio de Janeiro. Mas não tinha mais dinheiro para o ônibus, e nem um celular para ligar e pedir carona aos meus pais. Enrolei a sacola com Shining Force no punho, e corri sem pausar para nada.
Foi só na metade do caminho que percebi uma estranheza ao meu redor. Apesar da hora avançada, não era comum estar completamente só, na rua. E, mesmo no auge do verão, via aquela fumacinha que expelimos pela boca quando o tempo está muito frio. No canto do olho, percebi que não estava mais tão sozinho ali. Sombras se mexiam nas calçadas, por trás de carros estacionados, saindo e entrando do foco dos postes.
Não fiquei para descobrir de onde vinham aquelas sombras, se é que havia algo material gerando elas, pois a energia que emanava delas era sufocante e pesada. Voltei a correr, ignorando sinais vermelhos e cruzamentos, apostei na minha fé para sair ileso naquele trajeto. Entrando na rua de casa, comecei a tatear com uma mão trêmula o bolso em busca da minha chave. Sentindo aquele raio gelado na espinha quando não encontramos algo importante, me escorei no muro, pois as forças de minas pernas já haviam ido embora.
Em uma nova investida, finalmente peguei a chave no mesmo bolso que estava vazio antes. Com as mãos ainda parecendo a de um sambista com um pandeiro, não conseguia enfiar a maldita na fechadura do portão. Ouvia passos se aproximando, lentos e arrastados, mas não tinha coragem de olhar sobre os ombros. Na loucura daquele momento de desespero, parecia que não havia jeito de entrar, e que meus pais e os vizinhos encontrariam meu corpo quando acordassem pela manhã.
Os passos finalmente me alcançaram, e pude ouvir também um tilintar suave, como de peças de metal se chocando de maneira ritmada. Na hora, me veio à mente a imagem do dono da loja, com os acessórios de ouro espalhados pelo corpo. Pude ver claramente aquela mão carcomida indo na direção do meu pescoço. Um forte cheiro também me atingiu, mas não aquele doce e inebriante, mas ácido e quente. Quando a voz falou, minhas narinas arderam, mas o próprio ardor foi o que me salvou.
“Vai pra casa, moleque! Vai acabar que nem eu assim”. Era o mendigo que dormia na esquina da minha rua, completamente bêbado, exalando o forte aroma do álcool. Feliz por não ser uma entidade maligna, me tranquilizei o suficiente para conseguir encaixar e girar a chave na fechadura. Entrei, bati o portão, e senti um alívio inacreditável, deslizando até o chão, com as costas tocando o metal gelado. Agitado demais para dormir, subi as escadas para meu quarto, liguei o Play 2, e virei a noite com Shining Force Neo.