Levar Need for Speed para a vida real não é aconselhável
Rio de Janeiro, metade de 2009. O agora quase adulto Pedro Scapin vivia a expectativa de fazer 18 invernos, e, finalmente, poder entrar na autoescola e tirar a carteira de motorista (se você fala carta, está errado). Ansioso por meu aniversário, em agosto, já entrei naquele ano pilhado com a possibilidade de aprender a dirigir, afinal de contas, Need for Speed e filmes de corrida sempre estiveram dentre os meus favoritos da vida.
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Depois de ver e rever todos filmes da franquia Velozes e Furiosos disponíveis na época, resolvi fazer uma outra jornada de nostalgia, revisitando grandes clássicos dos games de corrida que joguei enquanto crescia. E foi aí que desenterrei o PlayStation 2 do armário, incólume, mesmo depois de tantos anos guardado, para voltar às lendárias Olympic City e Bayview, dos dois jogos da série Underground.
Alucinado novamente pelo feitiço que só os dois Underground já tiveram em Need of Speed, não queria saber de outra coisa: era videogame o dia inteiro, independente do horário, e até mesmo do local, uma vez que sempre levava o PS2 para a locadora dos meus pais. E foi, mais uma vez, lá, que a história que vos conto hoje começou a degringolar.
Sentado atrás do balcão de atendimento, voando pelas ruas piscantes de neon em Baycity, à bordo de meu Peugeot 206 preto fosco e rebaixado, fui interrompido pela chegada de um cliente. O rapaz se aproximou com o pedido por indicações de filmes de ação, “no estilo Jackie Chan, se tiver”. Irritado, pausei meu Underground e caminhei com o cara pelos corredores da locadora, apontando uma ou outra caixa, no trajeto.
Depois que ele se decidiu por Busca Implacável e O 5º Comando, voltamos ao balcão, e, enquanto dava sequência ao processo de aluguel dos filmes, ele perguntou que jogo era aquele na TV. Ao responder que era Need for Speed: Underground 2, ele me pediu para “jogar um pouquinho e aprender uns macetes pra ganhar do filho”. Passei o controle, e o contato imediato com meu Peugeot tunado tirou um sorriso dos lábios do rapaz, que comentou:
“Que coincidência! Eu já dirigi muito um desses aí na vida real. Meu pai é mecânico, e tem um 206 até hoje, guardado em casa. Tá zero bala, ele agora só anda de carona, depois que minha mãe morreu. Dona Cristina foi a última a andar com ele no ‘pejôzinho’.”
Tirando os olhos da tela do computador, subitamente interessado, me virei para o cliente e começamos a falar sobre o 206 do pai dele.
“É serio? Pô, meu sonho é ter um 206 desses na vida real. Já pensou conseguir deixar ele tunadão igual ao meu do videogame? Vou fazer 18 anos, em agosto, mas nem sei dirigir ainda”, comentei numa mistura de empolgação e birra.
Foi nesse momento que meu pai chegou na locadora, trazendo consigo umas sacolas do mercado. Ele cumprimentou o cliente, e veio para meu lado, atrás do balcão, e perguntou sobre o que estávamos conversando.
“Tava contando pro teu filho que meu pai tem um Peugeot igual ao dele no PlayStation. Tá lá bonitinho na oficina, se quiser posso ver com Seu Rolando se ele te vende pro garoto usar quando fizer 18”, respondeu o homem.
Puxando o braço do meu pai, supliquei que ele comprasse o carro. Nossa, naquele mesmo instante já estava viajando na minha cabeça com as coisas que faria com o 206. A primeira delas seria meter um neon azul pulsante para queimar o asfalto de noite.
“Ele vai fazer 18 em agosto, de repente a gente faz negócio mesmo. Vê com ele direitinho quanto ele quer no carro, e aí a gente marca uma visita pro Pedro ver se quer mesmo. Tá inteirão mesmo?”, indagou meu pai.
“Tá um brinco, Xandão. Você sabe que meu pai tratava aquele carro melhor do que eu. Ainda tô com as marcas da mão dele desde quando derrubei um hambúrguer no banco”, o homem respondeu.
O cara saiu da locadora deixando para trás um turbilhão de ideias e expectativas na minha cabeça. Meu pai tentou acalmar meu ânimo, explicando que o carro poderia estar ruim, ou que o dono talvez não quisesse vender, ou coisa do tipo, e que não era para eu ficar me empolgando à toa.
No dia seguinte, quando o homem chegou para devolver os filmes que alugou, eu já estava em casa, e fui contactado por meu pai pelo telefone, numa ligação que nunca mais vou esquecer, pois foi quando descobri que, não só Seu Rolando disse que venderia o Peugeot, como o carro tava lá na locadora, esperando para eu dar uma olhada nele.
Montei na bicicleta, com um deboche na cabeça, pensando que seria a última vez que eu andaria nela, e pedalei mais rápido que Lance Armstrong na Tour de France. Virando a esquina para a locadora, já vi de longe o brilho do 206. E o bicho também era preto, igualzinho ao meu no Need for Speed.
Fui recebido pelo cliente, que, com um sorriso no rosto, me mostrava um chaveiro em forma de caveira prateada. “Aí, garoto, teu pai já olhou o pejôzinho e a gente fechou negócio. Só não vai botar um adesivo do Fluminense nele, hein?!”.
Incrédulo, abri a boca, mas não conseguia falar nada. Arranquei a chave das mãos do homem, e fui logo para dentro do 206. Ele estava impecável. Os bancos, de couro só faltavam refletir de tão brilhantes. O painel, a mesma coisa. Era igualzinho ao do Need. As janelas estavam abertas, e meu pai se apoiou na do lado do carona, me encorajando a ligar o carro, que já estava em ponto morto e com o freio de mão puxado, só para evitar qualquer acidente.
Enfiei a chave na ignição, e depois de um último olhar buscando a aprovação do meu pai, virei a dita cuja com gosto. O motor pegou na hora, roncando alto. Como uma criança imitando o Speed Racer, virei o volante para um lado e para o outro, fingindo que estava fazendo uma curva enorme em Tóquio. Fiquei lá dentro até a hora de voltar para casa.
No jantar, meu pai disse que iria me ensinar os básicos no dia seguinte, e eu, é claro, nem consegui dormir de tanta ansiedade. Quando chegou a manhã, fomos para uma rua mais tranquila do bairro, e ele começou a me dar as instruções.
Peguei bem rápido os macetes, e antes de irmos embora, ele deixou eu tentar dirigir um pouco. Foi incrível! Andei alguns poucos metros e acabei deixando o motor morrer, mas nem liguei, só sabia dizer que tinha dirigido.
Nos meses seguintes, segui praticando a direção no Peugeot, sempre acompanhado do meu pai, mas cada vez mais confiante para andar sozinho. E foi exatamente isso que aconteceu, justamente no dia em que completei 18 anos. Havia chegado a hora de usar tudo que aprendi nas aulas e no Need for Speed.
Meu pai me acordou, me deu parabéns, e disse “teu presente tá lá fora. Hoje você vai dirigir sozinho”. Pulei da cama comemorando, e já procurei o tênis, sem querer perder um segundo sequer de tempo com o 206.
O carro já estava na rua, e meus pais ficaram no portão, abraçados, olhando enquanto eu sentava no banco. Ao bater a porta, senti uma energia diferente, pesada, quase opressora, mas ignorei, pensando que era só o “frio na barriga” por estar no volante sem ninguém me controlando, pela primeira vez.
Engatei a primeira marcha, e saí devagarzinho pela rua. Mas algo não estava certo. Eu simplesmente não conseguia me sentir feliz. Aquela sensação bizarra era cada vez mais forte. Era domingo, então a rua estava vazia, mas não parava de ter pensamentos ruins, em que estava atropelando pessoas e animais, eu podia ver os corpos voando ou sendo esmagados pelo Peugeot, o leão prateado no capô coberto pelo escarlate do sangue das vítimas.
Assustado, comecei a ficar ofegante, mas não conseguia tirar as mãos do volante, nem o pé do acelerador. O 206 foi ganhando velocidade, e meus pais, aos berros, sacudiam as mãos enquanto corriam desesperados atrás do carro, pedindo para que eu freasse e parasse.
Mas o Peugeot parecia ter vida própria, puxando a direção para as calçadas, enquanto eu lutava, coberto de suor, para mantê-lo na pista.
Foi aí que o pior aconteceu. Da outra esquina, surgiu uma mulher. Trazia consigo um carrinho de bebê, e um pequeno poodle na coleira, e subia a rua, despreocupada, fazendo um passeio matinal com o filho e o pet. Ela estava com um fone nos ouvidos, e não percebeu o ronco gutural que o Peugeot estava fazendo, avançando, sedento.
Tomado pelo puro horror do momento, um nome brilhou forte na minha cabeça, e lembrei da minha primeira conversa com o cliente, na locadora, em que ele comentou sobre como a mãe foi a última pessoa a andar no Peugeot com Seu Rolando. Ela ainda estava ali, em espírito, ou algo pior, e controlava a direção do carro com um ódio inominável.
Fechei os olhos e berrei, suplicando para que ela parasse, que fosse embora, e me deixasse em paz: “Sai daqui, pelo amor de Deus. Eu não quero morrer, nem matar ninguém. Você já morreu, me deixa em paz”.
Como um velcro arrancado à força, senti meu pé descolando do acelerador, e rapidamente o pressionei com o máximo de força possível no pedal do freio. O Peugeot cantou pneu, deixando no asfalto marcas escuras, que emanavam uma fumaça, também de cor sombria, mais preta que um preto comum.
Meus pais se aproximaram, esbaforidos, e se dividiram em checar se eu estava bem, e em acalmar a mãe que passeava com o filho e o cachorrinho.
Abri a porta do 206, e, com as pernas ainda tremendo violentamente, corri para casa, ignorando os chamados dos meus pais. Bati a porta do quarto, arranquei o Memory Card do PS2, e os esmaguei no chão com o pé.
Nunca mais voltei a jogar Need for Speed Underground com o Peugeot 206, e obriguei meu pai a desfazer o negócio com o mecânico. Ainda sinto calafrios quando vejo um leão prateado, no trânsito…