Dark Souls mudou e poderia ter mudado ainda mais a minha vida
Rio de Janeiro, outubro de 2011. Um ingênuo estudante de jornalismo saía do cinema após uma boa sessão de Atividade Paranormal 3, e algo brilhou na vitrine de uma loja de games local. Uma capa. Um guerreiro de costas. Ao fundo, almas digladiando no meio de uma aura azulada fantasmagórica. Duas palavras impactantes com um fino risco no centro: Dark Souls. Começava ali uma história fantástica, mas que, por muito pouco, não teve um fim trágico. Meu nome é Pedro Scapin, e este é o TBT, coluna semanal na qual lembrarei com carinho (ou não) de jogos, consoles e acessórios do passado, e como eles ajudaram a me tornar o gamer que sou hoje.
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Hipnotizado, abandonei os amigos que comigo estavam no shopping, e fui em direção à loja. Boquiaberto, quase babando, fixei os olhos naquela capa de jogo do Xbox 360, console que eu tinha na época, e fui abordado – retirado daquele transe – por um vendedor, que me perguntou como ele poderia ajudar. De volta à realidade, disse que gostaria de saber mais sobre este tal Dark Souls, e ele me convidou ao interior do estabelecimento, onde estava sendo transmitido, em looping, o trailer do dito cujo. Foi paixão à primeira vista. Os cenários, os combates, o visual absurdo dos chefões. Tudo clicou de maneira instantânea dentro do meu coração.
Como um estudante padrão do Brasil, não tinha dinheiro para comprar o jogo, pelo menos não à vista, e tive que recorrer a meu pobre cartão universitário, com seu pífio limite de crédito, para adquirir Dark Souls parcelado em todas as vezes possíveis. Já perdido dos meus amigos, nem fiz questão de procurá-los, entrei no busão e fui para casa comendo a capa com os olhos. Quem nunca leu absolutamente todas as informações na parte de trás da caixa de um jogo não tá fazendo isso certo.
Finalmente em meu lar, subi correndo as escadas, me lançando acima três degraus por vez, liguei a TV e o Xbox, já abrindo a bandeja para inserir aquele belíssimo disco no console. Apesar da empolgação, gastei mais ou menos duas horas na criação de personagem, editando cada detalhezinho, e, no final, ficou uma verdadeira assombração, mas, como eu estava me preparando para enfrentar inimigos poderosos, de repente ser feio ajudaria. Ledo engano.
Desde o primeiro encontro com um inimigo eu já percebi que havia cometido um erro. Que o feitiço lançado por aquela capinha de Xbox 360 havia me capturado numa armadilha inescapável. Foram mais algumas horas incessantemente sendo doutrinado por criaturas caquéticas em um mundo onde uma maldição impedia que fosse possível morrer. Mas, aparentemente, eu era imune a isso. Nunca na minha vida registrei tantas vezes a mesma tela e as mesmas duas palavras na minha televisão: You Died.
Injuriado, arranquei o disco do Xbox, quase quebrando a capa para guardar, e voltei na loja do shopping, com sangue nos olhos pra cima do vendedor. Chegando lá, reclamei e esperneei dizendo que o jogo era um lixo, e que queria trocar. Foi uma experiência tão angustiante, tão traumática, que nem sequer me lembro qual outro game eu peguei no lugar. Quase tudo naquele dia virou um borrão na minha memória. E eu nunca mais ouvi falar de Dark Souls e From Software.
Até que quatro anos depois, já formado, mas ainda um brasileiro sem grana, me esforcei no trabalho por alguns meses até que finalmente consegui reunir verba para comprar um PlayStation 4, e saí da loja com dois jogos: o FIFA da época, e um tal de Bloodborne, que eu não conhecia então, mas me fisgou com um trailer inebriante, um gameplay veloz e sangrento, em ambientes sombrios e inóspitos. Fui pra casa todo serelepe e ansioso para instalar o PS4 pela primeira vez no meu quarto. Seria uma sexta-feira daquelas!
Cabos na tomada e na TV, aquele apitinho agudo indicando que o PS4 estava ligado, configurações iniciais concluídas, caí dentro de jogar meu Fifinha de lei, pois era a primeira vez que experimentava a versão “de nova geração”, que, na época, foi um belo salto em relação ao que se tinha no PS3 e no Xbox 360. Horas depois, lembrei que havia comprado um segundo jogo. E resolvi testar por alguns minutos antes de dormir, “só pra ver como é”. Disco no console, pressionei o X para abrir o aplicativo e logo me vi diante de uma logo estranhamente familiar, mas que não me deixava cravar com certeza de onde eu a conhecia. Dando de ombros, ignorei a sensação e segui com a vida.
Já mais velho, e sem a mesma paciência, perdi menos tempo construindo meu personagem, e fui logo pra ação. Dentro de 30 segundos eu estava sendo dilacerado por um lobisomem gigante enquanto tentava me defender apenas com as mãos. E foi aí que tudo se conectou. Aquelas malditas palavras desbloquearam, em meu cérebro, memórias reprimidas de anos antes. “You Died”. Em choque, peguei meu celular e numa rápida pesquisa confirmei meus piores pensamentos. Bloodborne era dos mesmos criadores de Dark Souls. Eu estava novamente dentro da armadilha da From Software.
Ao mesmo tempo em que me tornei menos paciente, com a idade veio também uma valorização maior pelo próprio dinheiro, uma vez que gastei o pouco que tinha para comprar o PS4 e aqueles jogos. Não poderia deixar para lá, e não tinha muito interesse em outros games da época. Resolvi perseverar e, aos poucos, fui entendendo algo que posteriormente apelidei de “O Sistema From Software”. Um ciclo de mortes e aprendizados, no qual você sofre intensamente no início de um jogo, até que finalmente passa por um momento cognitivo chave e enxerga aquilo tudo com outros olhos. Não coincidentemente, Bloodborne possui um esquema de “Insight”, que mostra o mundo como ele verdadeiramente é, após um certo evento in-game.
Dali pra frente, fiquei absolutamente viciado em Bloodborne. Não comia direito, não ligava pro amigos, e era um mero zumbi no trabalho, contando as horas para voltar para casa e mergulhar em Yharnam novamente. Centenas de horas e uma platina depois, não havia saciado minha sede por Bloodborne. Encontrei no YouTube um mundo de conhecimento além. Estudei o assunto com uma dedicação que a matemática e a física jamais receberam de mim.
Hoje, Bloodborne é meu jogo favorito. Conheci e entrevistei seu criador, Hidetaka Miyazaki. Possuo quadros e action figures em casa. Escuto a trilha sonora a caminho do trabalho. Espalho a palavra a todos que não a conhecem. E pensar que toda uma fatia considerável do meu mundo, do meu caráter, poderiam não existir se houvesse desistido pelo trauma causado por Dark Souls. Quis o universo que as engrenagens da roda da vida se ajeitassem, e atualmente tenho no currículo a conquista de todos os desafios lançados pela From Software, ansioso pela próxima aventura. Que bom que deu tudo certo no final.