Como WarioWare une Lavoisier, metalinguagem e dedos no nariz
Um dos aspectos mais interessantes de se aprofundar na história e nas referências dos videogames está na possibilidade de encontrar relação entre coisas que, a princípio, parecem não ter em comum.
É bem famoso, por exemplo, o fato do Sonic ter se inspirado ao mesmo tempo no Goku de Dragon Ball (na transformação de Super Sonic) e no Michael Jackson (pelos icônicos sapatos). O ouriço se torna então uma ponte que liga o lendário Super Saiyajin com o rei do pop para formar uma coisa que totalmente diferente da soma dessas referências.
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O jogo sobre o qual falarei aqui é o ponto de encontro de várias referências e inspirações. Consegue juntar elementos da história da Nintendo, metalinguagem sobre desenvolvimento de jogos e o conceito de anti-herói mercenário para apresentar algo que, não só é diferente de tudo isso, como também consegue encontrar o equilíbrio perfeito entre homenagem e paródia.
A pérola da 10ª arte de hoje é o primeiro jogo da série que fez com que a “sombra” maligna do Mario se libertasse de vez da estética do mascote da Nintendo para trilhar um caminho totalmente próprio.
Hoje vamos falar sobre a estreia da pitoresca série WarioWare nos videogames.
Do que se trata
Lançado originalmente em março de 2023 para o Game Boy Advance, WarioWare Inc Mega Microgames é o jogo que deu início a uma nova franquia protagonizada por Wario, o doppelgänger distorcido do Mario que já vinha ganhando cada vez mais espaço com a série Wario Land.
Aqui, porém, Wario se descola do gênero de plataforma para poder produzir os próprios jogos. Literalmente, no caso, porque a história do jogo envolve de fato o anti-herói ligando para alguns amigos para montar a própria desenvolvedora, visando enriquecer enquanto submete o grande público às próprias maluquices.
Assim, WarioWare funciona também como um exercício de metalinguagem: é um jogo sobre desenvolver jogos, ao mesmo tempo em que reúne vários outros jogos em um enquanto faz comentários sobre a natureza da indústria da qual faz parte.
O que, na prática, vira uma desculpa para trazer uma viciante maratona de desafios curtos com dezenas de referências pipocando o tempo todo na tela.
O que você faz no jogo
Definir WarioWare como um compilado de minigames não dá conta de descrever o que o jogo de fato é. Até porque, no próprio título, ele já se distingue do conceito de minigames propondo algo ainda menor: os microgames.
Microgames são basicamente jogos instantâneos de poucos segundos, onde o que conta é a velocidade de raciocínio para entender o contexto e realizar a ação necessária antes que venha o próximo jogo. As ações vão desde desviar de um tubarão motorizado até enfiar com sucesso o dedo no nariz, o que já ilustra a abrangência temática do título.
O jogo traz nove personagens originais, além do próprio Wario, cada um com uma curadoria própria de microgames dentro de temas específicos. O dançarino Jimmy, por exemplo, tem jogos baseados em esporte, enquanto o DJ 9-Volt faz uma viagem por clássicos dos consoles da Nintendo.
Um detalhe histórico interessante é que a ideia dos microgames não surgiu pela primeira vez em WarioWare. O conceito já estava presente em um jogo de Nintendo 64 chamado Mario Artist: Polygon Studio, que foi lançado apenas no Japão por precisar do obscuro acessório 64DD, o drive de disco do console.
O impacto estético
É atribuída ao químico francês Antoine-Laurent Lavoisier a frase “na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. É seguro supor que Lavoisier teria dito o mesmo sobre a indústria de games se tivesse tido a oportunidade de jogar WarioWare em vida.
O jogo é o ponto de convergência de várias ideias e inspirações que passaram pela história da Nintendo. Mas não se limita a ser apenas o destino final dessas ideias, se transformando, na verdade, em um novo começo.
WarioWare virou, nos últimos 20 anos, uma espécie de laboratório de experimentação de todo tipo de tecnologias e proposta maluca de controle dos consoles da Nintendo. As sequências exploraram a tela de toque do DS, os controles de movimento do Wii e as duas telas do Wii U, servindo como uma espécie de portfolio do potencial de cada console.
Acima de tudo, é mais um desses jogos que inaugurou um gênero próprio, não apenas no dinamismo do conceito de microgames, como também no aloprado senso de humor autorreferente. É um jogo que toma bastante liberdade para brincar com a história dos videogames, sem se tornar debochado e desrespeitoso no processo.
Talvez hoje, WarioWare pareça “normal demais” para entrar na lista de pérolas desta coluna. Mas isso porque o jogo foi bem-sucedido o bastante para fazer do inusitado uma nova convenção.
E, convenhamos, em que outro jogo eu conseguiria fazer uma ponte entre as frases de Lavoisier e a missão de enfiar um dedo no nariz com sucesso em menos de 4 segundos?
Nos vemos na próxima semana com mais uma pérola da 10ª arte!