Quando a Nintendo revelou ao mundo Metroid Prime, o primeiro jogo 3D da série, uma certa preocupação tomou conta da sociedade civil. Como assim é em primeira pessoa? Virou um jogo de tiro? Quem está por trás não é a Nintendo, mas um estúdio americano aleatório? Tinha tudo para dar errado, certo?
Corte seco para o momento em que você já está jogando e percebe com deslumbre que um clarão muito forte te faz ver o reflexo dos sonhos de Samus pelo visor do capacete dela. Apenas um dos muitos detalhes que te mostram que Metroid Prime é um jogo especial.
Tinha tudo para dar errado, sim. É quase criminoso que tenha dado tão certo. Como se os planetas do sistema solar tivessem se alinhado em segredo, apontando para um estúdio meio desconhecido em Austin, no Texas, enquanto a música tema de Brinstar tocava baixinho ao fundo.
A releitura da fórmula
Na gastronomia, é comum chefs de cozinha trabalharem em releituras de pratos clássicos – ou pelo menos foi isso que entendi vendo várias temporadas de Masterchef Brasil. A ideia é dar uma nova cara para uma receita conhecida. Talvez adicionando ingredientes, mudando algo na forma de preparo, subvertendo a montagem do prato, mas ainda mantendo a sua essência.
O que faz com que uma releitura seja bem sucedida? Algumas pessoas diriam que ela precisa ser fiel. Mas fiel a quê? Quais aspectos são cruciais e quais são negociáveis? Quando liberdades criativas são tomadas em relação à receita original, como elas podem melhorar a experiência sem desfigurá-la?
Nenhum jogo consegue responder a essas perguntas melhor do que Metroid Prime.
O tipo de releitura que o jogo fez esteve muito em evidência na segunda metade dos anos 90: a transição de uma série de jogos do 2D para 3D. Tarefa complicadíssima. Super Metroid foi, afinal, um dos jogos mais icônicos e aclamados da gigantesca biblioteca do Super Nintendo. Enquanto Mario e Zelda foram muito bem adaptados para três dimensões no Nintendo 64, ninguém na Nintendo parecia saber muito bem como fazer isso com nossa craque Samus Aran.
O tal estúdio aleatório do Texas, Retro Studios, precisava olhar para Super Metroid, entender quais eram os elementos principais da fórmula e descobrir um jeito de transportar esses elementos para um jogo 3D de maneira satisfatória. E é aí que entra a tão falada visão em primeira pessoa.
Por dentro do capacete
Metroid Prime é um FPS, vulgo tirinho em primeira pessoa? A rigor, sim, a visão está em primeira pessoa e você sai por aí atirando. Mas não é bem o que sentimos interagindo com o jogo, na prática. Basta dizer que o jogo tem mira automática. O combate é muito mais focado em posicionamento, esquivas e ritmo do que na destreza de mirar e atirar.
A câmera em primeira pessoa não está lá para reforçar o combate, mas para interpretar um dos elementos mais marcantes de Super Metroid e da série em geral: a imersão. O sentimento de estar na pele da Samus, sozinha explorando um planeta desconhecido e inóspito, é amplificado quando somos jogados para o mesmo campo de visão da protagonista.
Isso também abre espaço para um dos aspectos mais geniais do jogo: a interface do capacete da armadura. Através do visor dela, elementos como barra de vida, mapa e número de mísseis deixam de ser apenas informações flutuando nos cantos da TV e passam a fazer parte do mundo do jogo – da diegese, como dizem os eruditos.
Lembra do reflexo dos olhos da Samus que comentei? Vale também para as gotas da chuva pingando no visor, para o vapor deixando o vidro – ou qualquer material de que esse troço é feito – embaçado, a interferência perto de alta eletricidade e por aí vai.
Não são detalhes jogados sem impacto no resto do jogo. Tudo isso é parte da compreensão de que a imersão na exploração do mundo jogo era crucial para os jogos 2D da série. A visão em terceira pessoa era negociável, desde que uma mudança nisso favorecesse algum sentimento predominante na experiência de jogar Metroid.
Juntando os ingredientes
Após ter encontrado o próprio tempero na releitura da fórmula de Metroid, restava à Retro apenas incorporar os demais ingredientes da receita de maneira satisfatória. Ingredientes como ambientação, músicas, power-ups, Morph Ball (a famosa Samus bolinha) e batalhas de chefe. Está tudo ali, reinterpretado com a mesma eficiência da visão em primeira pessoa. Destaque especial para a trilha sonora, que leva facilmente o troféu Game Arena de “Melhores Trilhas Para Deixar Rolando Enquanto Estuda™”.
Foi muito inteligente também a decisão de deixar os detalhes da história como algo opcional. Uma das funções do capacete de Samus é escanear os arredores em busca de informações sobre aquele mundo, que vão desde dados sobre as formas de vida até textos antigos de templos em ruínas. É escaneando o mundo que podemos sacar o que rolou no planeta Tallon IV, quem foram os Chozo e o que os piratas espaciais foram fazer ali.
Mas se não quisermos interromper o ritmo do jogo, podemos só seguir a exploração deixando tudo isso de lado. É um formato de narrativa onde a ambientação e a leitura de colecionáveis te contam a história em uma camada abaixo da ação principal do jogo. Esse modelo tem muito prestígio hoje graças a jogos como Dark Souls, mas era bem mais raro lá em 2002.
A melhor adaptação de um jogo de videogame já feita?
Adaptar jogos para outra mídia é mais difícil do que a versão da HBO de The Last of Us faz parecer. Adaptar jogos para a mesma mídia, para outro jogo de apresentação diferente, como é o cado da transição para 3D, talvez seja mais difícil ainda. Nesse sentido, Metroid Prime pode ser considerado uma das melhores releituras de uma obra de arte de todos os tempos.
A maneira como ele entendeu a essência de Metroid e se permitiu explorar e maximizar essa essência na hora de interpretá-la em três dimensões é nada menos que sublime. Todos os elementos do jogo funcionam em sintonia, como se dançassem uma coreografia perfeitamente ensaiada, para capturar e transmitir os sentimentos predominantes de Super Metroid em um formato totalmente novo.
Felizmente uma nova geração poderá ter acesso a tudo isso com o lançamento da versão remasterizada para Nintendo Switch. Porque isso é tão verdade em 2023 quanto era duas décadas atrás.
Porque certas receitas são atemporais. Às vezes basta uma pitadinha de reflexo no visor do capacete em primeira pessoa antes de levar ao forno para vermos nascer uma nova obra-prima.
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