Entrevista com desenvolvedores revela o intrigante processo de criação por trás de Pikmin
Talvez isso soe estranho para quem nunca teve a oportunidade de jogar, mas há algo de macabro e intimidador em Pikmin. Sinto isso desde o primeiro jogo da série, lançado em 2002 para o Nintendo GameCube. A forma como as almas dos Pikmin flutuam no ar, quando são devorados por criaturas alienígenas, ou a urgência de voltar para a nave antes do anoitecer, tudo cria uma tensão que paira no ar, transitando entre a fofura e o terror.
Uma recente entrevista da série Ask the Developer (“pergunte ao desenvolvedor”), da Nintendo, trouxe detalhes dos bastidores que deram nova perspectiva a essa impressão. Shigeru Miyamoto, criador de Pikmin, juntamente com os ex-diretores da série, Shigefumi Hino e Masamichi Abe, revelaram detalhes intrigantes sobre as origens dessas adoráveis criaturas, trazendo à tona o lado mais sombrio por trás do conceito original dos jogos.
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Ask The Developer é um projeto que dá continuidade a uma iniciativa do falecido ex-presidente da Nintendo, Satoru Iwata. Foi dele a ideia de conduzir uma série de entrevistas com equipes de desenvolvimento de inúmeros projetos da Nintendo, divulgando, para o público, detalhes até então desconhecidos do processo criativo, sempre com um clima mais caseiro e informal – esse mesmo formato renderia um podcast incrível, inclusive.
Durante a entrevista, Hino revelou que a equipe inicialmente planejava apresentar criaturas com chips de inteligência artificial nas cabeças no primeiro jogo de Pikmin. Os jogadores teriam a capacidade de controlar essas criaturas atribuindo diferentes chips. Foram mostrados conceitos artísticos desse protótipo, revelando que os primeiros Pikmins teriam uma aparência redonda, com membros, nariz, olhos e uma antena.
Um ponto importante sobre esses primeiros esboços é que eles foram pensados para um jogo de Nintendo 64, antecessor do GameCube. É possível notar, pela imagem, que a ideia era utilizar um visual mais cartunizado, que remete à direção de arte de títulos como Paper Mario e Yoshi’s Story. Essa escolha provavelmente se deu pelas limitações de hardware da época. Se esse visual tivesse ido adiante, provavelmente teríamos uma experiência bem menos charmosa, sem esse apelo misterioso e meio sombrio que mencionei.
A equipe de desenvolvimento também percebeu isso. Hino conta que sentiu que esses designs iniciais “careciam de impacto como personagens”, mesmo sendo fofos. Foi então que o designer Junji Morii entrou em cena. Os esboços criados por ele retratavam os Pikmin com uma aparência mais semelhante à de plantas. Essa nova abordagem foi escolhida por unanimidade pelo time envolvido no projeto, incluindo Miyamoto.
Os primeiros esboços de Morii apresentavam um estilo bem distinto, influenciado pelo interesse do designer nos trabalhos do renomado diretor de cinema Tim Burton. Morii queria que os designs dos Pikmin transmitissem não apenas fofura, mas também uma sensação de estranheza e peso emocional, utilizando linhas sobrepostas para criar essa estética única.
A equipe também buscou contrastar com os visual vibrante das séries Mario e Zelda, criando o mundo de Pikmin com uma atmosfera mais sombria, madura e misteriosa. Nessa direção, outra grande inspiração citada na entrevista foi o filme experimental francês “La Planète sauvage” (O Planeta Selvagem), de 1973.
Quando vi o trailer do filme (abaixo), a princípio, achei tudo bem deslocado da estética infantojuvenil da maioria dos jogos da Nintendo. Mas logo percebi que essa referência ajuda a explicar não apenas esse tom mais inóspito que fica nas entrelinhas, mas também o visual mais surreal dos inimigos de Pikmin, que não são exatamente insetos do mundo real, mas criaturas híbridas que, novamente, estabelecem uma ponte muito específica entre o cativante e o ameaçador.
Tudo isso corrobora o aspecto sombrio e misterioso que pode ser percebido nos jogos, mas falta ainda o lado mais ameaçador e hostil do planeta explorado pelo capitão Olimar. É aí que entra outra referência curiosa: o livro “O Gene Egoísta”, do biólogo Richard Dawkins. A obra, publicado originalmente em 1976, trouxe ao processo criativo de Pikmin uma visão mais impessoal do ciclo da natureza, que é, muitas vezes, implacável e cruel com os seres mais vulneráveis da cadeia alimentar. E é justamente essa a posição do jogador, sozinho em um planeta inóspito, e dos Pikmin, criaturas que, quando sozinhas, são presa fácil para os seres da fauna do jogo.
“Criar um ecossistema da vida real não era nosso plano principal, mas tínhamos a intenção de transmitir um toque de melancolia, não apenas fofura”, conta Hino. “É como olhar para um mundo realista de cima, como se estivéssemos com uma visão de pássaro”, conclui o antigo diretor.
O mais fascinante dessa sopa de ideias e influências é que, de uma forma ou de outra, tudo isso foi parar no resultado final. E não apenas como no aspecto visual, na direção de arte, mas também – e principalmente, eu diria – no sentimento que jogar Pikmin evoca nas pessoas. Entrevistas como essa ajudam a mostrar que as coisas que sentimos quando interagimos com algum jogo não são necessariamente fruto do acaso, ou de alguma impressão que julgamos ser apenas algo particular e puramente subjetivo.
Muitas vezes, esses sentimentos são o resultado de muita pesquisa e um esforço deliberado para expressar algo que estava na visão original do jogo, nas primeiras reuniões e esboços que culminaram na experiência que chegou até nós. Basta ver quanta coisa existia por trás da minha vaga sensação de que havia algo de sombrio nos jogos de Pikmin.
Uma série pode virar uma marca global. Uma empresa como a Nintendo continua sendo uma corporação visando lucro e valorização das próprias ações no mercado. Mas, em última análise, jogos são expressão artística de visões e intenções muito pessoais que dialogam com pessoas do mundo todo. E é muito importante não perder isso de vista.