Quando Street Fighter virou uma distopia intergalática
Videogames têm um sério problema com a numeração dos jogos e consoles. Note, por exemplo, que o Xbox One não é o primeiro console da marca, e veio bem depois do Xbox 360. Igualmente estranho é constatar que o Mario Kart 64 foi lançado quase 20 anos antes de Mario Kart 8. E nem vou entrar no mérito de casos como Final Fantasy X-2, porque em determinado momento eu só desisti e entreguei para o universo.
Trouxe isso à tona porque o jogo que quero apresentar para vocês hoje é Street Fighter 2010, uma espécia de spin-off que se foi lançada antes de Street Fighter 2 , quando a fórmula da série ainda não estava muito bem consolidada e a Capcom se aventurou em outros gêneros e possibilidades de modo bem experimental.
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Boa parte do trabalho de curadoria de pérolas para essa coluna consiste em identificar personagens e séries icônicas em situações totalmente aleatórias. Pode ser o Luigi pedindo informações nas ruas do Rio de Janeiro, ou o Pac-Man tropecando em um skate enquanto vai buscar o leite das crianças. Tudo isso entra no radar. Mas mesmo vacinado para rolês aleatórios dos games, eu não acredito que estava preparado para me deparar com o Ken de Street Fighter virando um cyborgue cientista caçador de mutantes no espaço sideral.
Quer entender como isso aconteceu? Bem-vinde ao clube, porque eu continuo com muitas dúvidas. Mas creio que posso ajudar dando um pouco mais contexto.
Do que se trata
Lançado em 1990 para o NES (vulgo Nintendinho), Street Fighter 2010: The Final Fight é um jogo da Capcom que não tem absolutamente nada a ver com Street Fighter e nem com Final Fight. Ou seja, estamos lidando com aquele que é, provavelmente, o título mais enganoso da história dos videogames. Pra completar a bagunça, o protagonista se chama Ken, mas não é exatamente o Ken que conhecemos. É digno de recorde no Guinness o tamanho da confusão que esse jogo consegue causar com pouquíssimas palavras-chave.
Tentar explicar não ajuda de muita coisa, mas vamos lá: a Capcom americana, na hora de vender o jogo nos Estados Unidos, resolveu mudar o nome do protagonista, Kevin Straker, para Ken. A empresa adicionou também o subtítulo “The Final Fight”, talvez por achar que frustrar o público das duas séries seria uma ótima estratégia de marketing. Mas é injusto colocar tudo na conta da adaptação, porque o jogo realmente se chamava Street Fighter no original japonês.
Mas a versão americana foi além, mudando também detalhes cruciais da história. Enquanto Kevin era só um policial ciborgue da divisão de crimes intergaláticos, o Ken da versão americana foi de fato campeão de artes marciais do torneio Street Fighter. Depois de conquistar o título, ele resolveu seguir a vida acadêmica e se tornou um cientista cibernético que roda a galáxia tentando recuperar o “cyboplasma”, uma dessas substâncias malucas de ficção científica que o próprio Ken inventou.
Enfim, é realmente difícil dizer se o contexto deixou tudo mais ou menos confuso.
O que você faz no jogo
O jogo não é de luta, mas sim de ação com progressão lateral. Lembra um pouco Ninja Gaiden, com o personagem principal se pendurando e escalando tudo, mas a realidade é que Street Fighter 2010 tem uma energia muito própria. No controle de Ken, o grande campeão do circuito Street Fighter – vamos ficar com essa versão que é mais legal – a missão é caçar alienígenas que foram contaminados com a tal da cyboplasma. Cada fase tem um alvo que precisa ser caçado para desbloquear o portal para a fase seguinte.
A premissa é interessante e os gráficos são muito bonitos, com uma estética que lembra a obra de HR Giger, artista surrealista que ganhou o Oscar pela concepção visual do filme Alien. Estaria tudo incrível se o jogo não fosse extremamente difícil e frustrante. Todas as caçadas têm um tempo limite de 2 minutos, o que, dependendo da missão, é um prazo bem apertado. Os obstáculos e inimigos seguem padrões bastante sádicos, e passar por tudo se torna um grande teste de resiliência. E provavelmente essa era a proposta mesmo, considerando que os Continues são infinitos, algo raro na época.
São 5 planetas diferentes, cada um com pelo menos 3 alvos, o que dá algo em torno de quase 20 fases. O jogo ainda reserva algumas reviravoltas para a reta final, caso você se importe com o desenrolar de uma fanfic do Ken ciborgue dando porrada em mutantes alienígenas.
O impacto estético
Street Fighter 2010 nos leva a uma época em que imaginávamos os anos 2000 como “O Futuro”, um mundo dominado por pessoas com roupas metálicas usando óculos de sol no escuro – o que, na verdade, descreve os anos 80. Tempos em que a Capcom achava que precisaria de uma boa desculpa para vender no mercado ocidental a história de um policial loiro e truculento descendo porrada em todo mundo pra tentar desfazer os próprios vacilos, algo que parece a sinopse ideal para um americano médio.
Se hoje o jogo se tornou uma relíquia em meio às pérolas dos videogames, é porque o nome Street Fighter ganhou uma proporção única na história desta indústria, algo que ainda parecia bastante improvável em 1990. O que, em retrospecto, é uma lição de vida para todos nós. Lendas não se formam sem erros e quedas. O caminho para o sucesso não existe sem desvios.
E, às vezes, esse desvio aparece na forma de um futuro distópico o Ken largou o kimono vermelho para vestir uma armadura cibernética e lutar contra monstros de Metroid do outro lado da galáxia.
Nos vemos na semana que vem com mais uma pérola da décima arte!