Sonic sempre amou a Nintendo… em uma dimensão paralela
Estamos em 2001. Enquanto o Vasco se sagrava campeão da Copa João Havelange e a música Dormi na Praça, da dupla Bruno e Marrone, dominava as rádios de todo o país, um evento histórico encerraria a chamada Guerra dos Consoles dos anos 90 definitivamente. A SEGA jogava a toalha, descontinuando a fabricação do Dreamcast, último console de mesa da companhia. Sonic Advance era lançado para o Game Boy Advance, marcando a primeira aparição do ouriço em um console da Nintendo.
Ao menos é o que consta nos registros oficiais. Mas a história viva nas rodas de conversa, nos bares de esquina e no eco dos corredores de galerias do mercado cinza, contavam uma versão diferente. Havia uma fita, diziam os rumores, que colocava o mascote da SEGA, em toda a velocidade, no Super Nintendo, bem no auge da rivalidade com a empresa do Mario.
Leia mais
- Pérolas da 10ª Arte – Alex Kidd In The Enchanted Castle
- Pérolas da 10ª Arte – Mortal Kombat Mythologies: Sub-Zero
- Pérolas da 10ª Arte – Pepsiman
O Pérolas da 10ª Arte de hoje não é apenas uma lenda urbana, mas a materialização de uma heresia aos olhos de qualquer leitor da Ação Games. Vamos mergulhar em Sonic 4, o título proibido de Super Nintendo.
Do que se trata
Sonic 4 é uma modificação de Speedy Gonzales: Los Gatos Bandidos, jogo de SNES desenvolvido pela Sunsoft e publicado pela Acclaim em 1995. Speedy Gonzales é um personagem dos desenhos de Looney Tunes que ficou conhecido aqui como Ligeirinho.
Era o jogo de plataforma, de um personagem cartunesco, cuja principal característica era correr muito rápido, então não é nenhuma surpresa que a Sunsoft tenha se inspirado em jogos do Sonic. Um mod com o ouriço parecia inevitável, mas quem, de fato, sujou as mãos foi um grupo peruano chamado “Twin Eagles Group”, o mesmo por trás do mítico Ronaldinho Soccer 97 (!).
É verdade que, mais tarde, tivemos um Sonic 4 oficial, lançado em 2010 para Wii, PS4, Xbox 360 e até o Ouya. Mas essa versão chegou tarde. É protocolar demais para apagar do imaginário popular o Sonic de Super Nintendo, e logo foi ofuscada por interpretações mais felizes do Sonic 2D, como Sonic Generations e Sonic Mania.
O que você faz no jogo
Como expliquei acima, nessa fita colocaram o Sonic como protagonista de outro jogo que foi inspirado no próprio Sonic, como uma cobra mordendo o próprio rabo. O resultado disso é um ouroboros, que remete, apenas superficialmente, à experiência de um título oficial do ouriço. Você corre rápido e encara alguns desafios típicos de jogos de plataforma, mas não vai muito além disso.
A vida não depende de argolas, mas sim de coraçõezinhos no canto inferior esquerdo da tela. E o pulo não é uma bolinha, capaz de atingir os inimigos. O jeito de derrotá-los é apertando o botão de ataque, que faz Sonic dar um chute. Esse movimento antecipa em muitos anos os combos que ele dá em suas participações em Smash Bros.
Ah, e tem o Mario…
A missão no jogo é salvar o Mario. Na verdade, vários Marios, que estão presos em jaulas espalhadas pelos cenários. Cada vez que Mario é resgatado, ele grita o próprio nome, como se o dom da fala tivesse regredido à condição de um pokémon. Por que Mario está preso? Por que Sonic se lança em uma perigosa missão para resgatar o rival? Como uma obra aberta que confia na inteligência do público, Sonic 4 deixa essas questões em aberto – ao lado de muitas outras.
Os cenários são levemente macabros, até desconcertantes. Temos, por exemplo, castelos medievais repletos de caveiras e velas. O céu das florestas é vermelho, cor de sangue, com a silhueta sombria das árvores ao fundo, te espreitando o tempo todo. Às vezes nos deparamos com placas de madeira com os dizeres “Mantenha distância!”. O tempo todo temos a sensação de que não deveríamos estar ali, não somos bem-vindos naquele universo, assim como Sonic não deveria estar no Super Nintendo.
Jogar Sonic 4 é, em si, um ato de transgressão da ordem universal. O próprio jogo, com os inimigos e cenários, parece estar reforçando essa mensagem. É por rebeldia que prosseguimos, e não apenas por diversão.
O impacto estético
Sonic 4 é um dos jogos extraoficiais que ajudam a contar a história da subcultura de modificações de jogos, os hoje tão conhecidos “mods”. Isso, muito antes das ferramentas para alterar games estarem tão acessíveis e difundidas como agora, onde temos inclusive plataformas como a Steam promovendo espaços para a comunidade modder. Isso já o coloca em uma posição bastante interessante na trajetória, quando falamos em impacto e legado estéticos.
Mas talvez esse jogo tenha ainda mais a nos dizer. A partir desse ponto discutirei eventos do final de Sonic 4, então fique atento para ⚠ spoilers ⚠ abaixo.
Ironicamente, o chefe final do jogo é capitão de um navio pirata. É como se Sonic precisasse derrotar o próprio conceito de pirataria para se libertar dessa dimensão paralela e retornar ao próprio universo, licenciado e publicado pela SEGA.
Ao derrotá-lo, libertamos Mario de modo definitivo. Não temos uma cutscene final, apenas textos flutuando sobre uma imagem monocromática de Sonic e Tails – que está ausente no jogo, inclusive. O texto nos conta que Mario e Sonic agora são amigos para sempre e que NADA (em caixa alta mesmo, no próprio jogo) poderá separá-los. E encerra com as seguintes sentenças:
Perceba que, aqui, anos antes do fim do Dreamcast e do lançamento de Sonic Advance, a Guerra dos Consoles estava encerrada. A mensagem do final do jogo pode ser apenas um pedido de paz nos estádios, mas talvez seja, na verdade, uma profecia, anunciando o que o século 21 nos reservava.
Hoje é comum vermos Mario e Sonic confraternizando, disputando jogos olímpicos de inverno ou lutando juntos contra o Mewtwo. Mas não podemos nos esquecer de que tudo isso começou na dimensão paralela de uma fita peruana, com um mod do Ligeirinho que, passando de mão em mão, espalhou a palavra e reescreveu a história dos videogames. A Nintendo e a SEGA podem nem fazer ideia de nada disso, mas nós não nos esqueceremos.
Nos vemos na semana que vem com mais uma pérola da décima arte!