Seaman: quando um peixe com rosto humano questiona a própria existência
Desde os tempos de Wining Eleven no PlayStation 2, todo ano divulgam um novo jogo de futebol avisando que “a inteligência artificial dos jogadores foi melhorada”. Isso nos leva a dois questionamentos. O primeiro deles: se estão há décadas aprimorando isso, por que a minha zaga sempre abre pro atacante adversário aos 38 do segundo tempo, como se fosse o Mar Vermelho dando passagem para Moisés?
A segunda e mais filosófica pergunta é a seguinte: será que um dia a inteligência artificial dos atletas virtuais vai evoluir a ponto deles perceberem que são bonecos de um jogo eletrônico? Como Buzz Lightyear vendo a si mesmo na televisão no primeiro Toy Story, será que veremos o drama do Messi do FIFA 24 – que nem se chamará mais FIFA – questionando a própria existência, ao descobrir que existe um Messi de carne e osso?
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Por muitos anos essa ideia apenas divertiu meus ataques de bobeira no tédio de algum expediente interminável, mas a verdade é que esse cenário que imaginei com o Messi já aconteceu. Não com um jogador de futebol, mas com um peixe com rosto de humano e a voz do Spock de Jornada nas Estrelas.
A Pérola da 10ª Arte da semana é um híbrido, não apenas de peixe e ser humano, mas de bichinho virtual com professor de filosofia. Com vocês, o lendário Seaman!
Do que se trata
Lançado em 1999 para o Dreamcast, Seaman é um simulador de pet desenvolvido pela Vivarium e publicado pela própria Sega. O jogo pegou o embalo da febre dos bichinhos virtuais que tomou o mundo de assalto nos anos 90, especialmente com os brinquedos da linha Tamagochi. A diferença é que aqui não criamos um dinossaurinho ou alienígena fofo, mas sim esse ser de difícil descrição na imagem abaixo.
Na história, um famoso biólogo francês vai ao Egito em 1930 para pesquisar a existência de um ser vivo que é reverenciado como um mensageiro dos deuses. Lá, ele descobre que peixes com rosto de humanos foram os responsáveis por espalhar conhecimento e linguagem entre os seres humanos desde a era da terceira dinastia egípcia, milênios antes de Cristo.
Tudo isso é narrado por Leonard Nimoy, o ator que fez o Spock na série clássica de Jornada nas Estrelas. Aqui ele interpreta o papel de si mesmo, um ator famoso que pegou o trabalho de narrar um jogo de videogame esquisito.
Talvez os parágrafos acima pareçam demasiado irônicos e absurdos, mas isso só reforça como Seaman é um artigo muito especial, que está nessa coluna com muitos méritos.
O que você faz no jogo
Você assume o papel de um cidadão comum que conseguiu chocar ovos de Seaman em um aquário e começa a conviver com esse misterioso e supostamente divino ser. Existem comandos básicos para pegar coisas ou acariciar o peixe, com uma mãozinha que funciona como uma seta de mouse. Mas o maior diferencial do jogo certamente era a possibilidade de conversar com o Seaman. Digo, literalmente falar com ele, através do microfone que vinha junto com o jogo.
É através de conversas e interações diárias que nosso grande amigo (?) se desenvolve gradativamente. O jogador também precisa controlar a temperatura do aquário e cuidar de insetos que servirão de alimento para o peixinho. Essa parte pareceu muito normal? Bem, veja como são os insetos:
Com o tempo, nosso homem-marinho de estimação não apenas se desenvolve em uma espécie de anfíbio três vezes mais macabro, como também começa a fazer perguntar mais profundas, tentar entender como você se sente em relação à própria vida, como se relaciona com as outras pessoas ou qual o nível de proximidade com os pais.
Sim, o que era pra ser um Tamagochi com microfone da Sega virou um terapeuta virtual na forma de um sapo com rosto de homem de meia idade.
O impacto estético
Em um determinado momento, Seaman te pergunta se você acredita que ele é real. Vídeos na internet nos mostram o que acontece em caso de resposta negativa. Ele segue um raciocínio aparentemente irrefutável:
Cheguei a conclusão que existo. Veja bem, você já ouviu falar de John F. Kennedy, certo? E os Beatles? Você acredita que essas pessoas existiram mesmo que as tenha visto apenas através de programas de televisão e revistas. Ou seja, são tão reais quanto eu.
E aqui descobrimos que, em 1999, um peixe com rosto humano no último console da Sega já tinha encontrado uma solução para a crise existencial que nem chegou ainda para o Messi poligonal dos jogos de futebol. Não apenas isso, como as interações desse jogo anteciparam, com uma boa dose de humor, o tipo de interação que algumas pessoas começaram a ter hoje com programas de inteligência artificial como o Chat GPT.
É assustador pensar em como um jogo pitoresco de mais de duas décadas atrás antecipou tudo isso, mesmo que brincando. E mais assustador ainda é olhar para esse troço:
Nos vemos na semana que vem com mais uma pérola da décima arte!