Detroit Become Human: quando uma luta por direitos civis é cooptada por robôs
Estamos em 2023 e o debate sobre videogame ser ou não arte foi superado (foi, né?). Uma vez que a gente entende que sim, é arte, podemos começar a pensar no potencial desse meio para contar histórias, produzir mensagens, fazer comentários sociais. Existem várias maneiras de se fazer isso, mas hoje vamos falar sobre o jeito favorito de um sujeito chamado David Cage, criador de Detroit: Become Human. Para ele, videogames precisam se aproximar do cinema.
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David Cage trabalha com jogos desde os anos 90, mas foi com o poder do processamento do PlayStation 3 que seus olhinhos brilharam, ao ver o sonho ficando mais próximo da realidade. É dele o famoso Heavy Rain (2010), que desde o começo se vendia como um filme interativo. Tropeços à parte, o jogo conseguia simular bem uma experiência cinematográfica, contando uma história meio batida sobre o misterioso sequestro de uma criança. Mas cinema, quando conta suas histórias, busca também fazer boas alegorias. Heavy Rain ainda não tinha chegado lá.
Em uma olhada rápida no dicionário, descobrimos que alegoria é uma forma de expressão ou interpretação que busca representar ideias em um sentido figurado. Para passar uma determinada mensagem, usamos um símbolo. Tempos Modernos, de Charlie Chaplin, usou o recurso da montagem para sugerir que trabalhadores saindo do metrô são como ovelhas de um rebanho, apenas para citar um exemplo.
Aí eu te pergunto: o que acontece quando David Cage, um homem branco europeu, sem grandes roteiros no currículo, decide escrever um jogo que é, também, uma alegoria sobre a luta por direitos civis pelo movimento negro dos Estados Unidos?
A resposta, estimado público, é Detroit: Become Human.
Do que se trata
A história de Detroit: Become Human é uma ficção científica que se propõe a imaginar um futuro relativamente próximo. Em 2038, tornou-se comum comprar androides fabricados por uma grande corporação para realizar todo tipo de serviço, desde tarefas domésticas até investigação policial. A partir dessa premissa, o jogo imagina o que aconteceria se os robôs adquirissem consciência e livre-arbítrio, sacando que estão em uma posição submissa na relação de poder com os humanos.
Daí entra toda a questão de libertação dos robôs em Detroit. Usando referências e alegorias inacreditavelmente desastradas, a história avança, explorando as consequências morais desse contexto, enquanto os androides vão se humanizando cada vez mais. Viram que boa sacada no título do jogo? Tornar-se humano, humanizar-se, robôs e tal…
Enfim, Detroit pega esse contexto para abordar questões sociais bem delicadas, com a sutileza de uma manada de búfalos em disparada.
O que você faz no jogo
Em Detroit, você assume o controle de três androides – o que já é problemático, considerando que eles querem ser livres – em funções diferentes, conduzindo histórias separadas que, eventualmente, irão se cruzar. O jogo envolve, basicamente, exploração, diálogos com diferentes alternativas de resposta, e os já infames quick time events (QTEs), nos quais devemos apertar botões específicos, no tempo certo, para reagir durante de cenas previamente roteirizadas.
Os três personagens principais de Detroit: Become Human são Connor, Markus e Kara. Connor é um policial que tem, como parceiro, um veterano que odeia androides. Markus é um cuidador de idosos que é acusado de um crime que não cometeu e acaba virando um revolucionário. E Kara fazia serviços domésticos para um alcoólatra abusivo até resolver fugir para se libertar dessa situação.
O impacto estético
Vou deixar vocês com uma imagem. Nela vemos Markus durante um protesto pela libertação de androides com 4 opções de frase para pichar na vidraça de um prédio.
“Nós temos um sonho” é a primeira opção, surrupiada do famoso discurso de Martin Luther King, que lutava pelos direitos civis da população negra nos Estados Unidos. Logo abaixo temos “Penso, logo sou“, sentença do filósofo René Descartes, conhecido como fundador da era moderna da Filosofia. A terceira frase diz “um planeta, duas raças“, que parece mandar pro espaço qualquer noção antropológica do que significa raça. Por fim temos “direitos iguais para androides“, uma frase tão direta que é a única acompanhada por um ponto de exclamação.
Sua escolha de pichação não altera em nada os rumos da história. São referências completamente jogadas, que esvaziam o sentido original, ao mesmo tempo que transmitem, de modo bem aloprado, a ideia de revolução, do ponto de vista dos movimentos sociais. No entanto, vale citar que um dos desfechos possíveis pra esse protesto é a criação de um campo de concentração de androides, em mais uma referência completamente irresponsável, que eu acredito nem precisar comentar.
Detroit: Become Human é uma tragédia declarada, com enorme orçamento de publicidade. Um acidente de trem que se orgulha de todo o planejamento e cuidado que teve para sabotar os trilhos e fazer o vagão descarrilhar. Ele é a manifestação máxima do sonho do David Cage de demonstrar o que videogames podem fazer para contar histórias. Mas a pergunta nunca foi se podem, e sim se devem.
Por fim, fiquem com a androide loira do menu principal de Detroit, baseada em nada menos que Scarlett Johansson, citando Martin Luther King:
Nos vemos na semana que vem com mais uma pérola da décima arte!